Paula Legey
Logo no primeiro capítulo de seu livro Primo Levi e a poesia, Lucíola localiza três movimentos da obra de Levi em torno de três significantes fundamentais: sonho, política e poesia. Esses significantes se articulam e desarticulam nas frases que Lucíola constrói e que destaco a seguir.
Primeiro movimento: o sonho é a política da poesia
Como afirma Lucíola, em Primo Levi, os poemas, tal como os sonhos, acontecem à revelia do autor. “Eclodem onde menos se espera.”[2] O sonho causa, orienta a poesia. Mas não se trata de um sonho tranquilo, daqueles que fazem dormir. Trata-se de um sonho dentro do sonho, em que a presença do real leva ao limiar do despertar. Lucíola indica como o poema, na obra de Primo Levi, tem um caráter fundante e uma anterioridade lógica em relação à prosa.
Segundo movimento: a poesia é o sonho da política
A poesia é uma ferramenta que permite escrever o inimaginável, tocar com as palavras o furo do trauma, forçar os limites do irrepresentável. A poesia “é o sonho da política quando se torna veículo de transmissão do dever de memória”[3].
Terceiro movimento: a política é a poesia do sonho
Um sonho traumático retorna durante anos e atravessa a obra de Levi. Um sonho político? Sua aparição se dá como prosa e como poesia. É um sonho dentro do sonho, em que a voz do carrasco, ao gritar Wstawać! (palavra em polonês equivalente a Levanta!, em português), convoca a um real que não se deixa assimilar. Um caroço que atravessa o tempo, matéria incandescente de sua poesia[4].
Em 1963, Levi disse a alguns entrevistadores que nada mais diria sobre os campos de concentração[5]. Mas isso não acontece. Em Os afogados e os sobreviventes[6], de 1986, ele retoma intensamente essa temática. Lucíola situa esse retorno no contexto da ascensão, à época, de teorias revisionistas e negacionistas. Parece ser, em alguma medida, em resposta a isso que Levi retoma o tema.
Primo Levi e a poesia enlaça sonho, política e poesia, tendo como guia o trabalho incansável do autor com as palavras em torno de um acontecimento que, se não pode ser completamente traduzido, não deve ser esquecido. É uma decisão ética, política e estética de Primo Levi[7] e uma decisão ética, política e estética de Lucíola também.
Lourenço Astúa de Moraes
Primo Levi e a poesia é um convite a adentrarmos a obra do autor italiano. Lucíola, que também é poeta, está aqui para o leitor como Dante está para Primo Levi, e como Virgílio para Dante. Ela vai nos guiando em um percurso que começa com o que chamou de significante caroço – essa injunção terrível: Wstawać! – imbricação berrada todos os dias, ao amanhecer, pelo oficial nazista do campo que quer dizer Levantar! ou Levanta!. O caminho segue e passa pela construção, em Levi, da zona cinzenta, isso que Giorgio Agamben vai chamar de novo elemento ético[8], ponto de fusão de todos os metais da ética tradicional[9], e chega, por fim, em buracos negros quando Lucíola nos conta que Levi indica um artigo publicado na Scientific American sobre buracos negros como uma de suas leituras fundamentais. Buracos negros, descobri lendo Primo Levi e a poesia, se tornam para ele um desdobramento inesperado e radical da zona cinzenta.
Esse livro me fez pensar na sublimação de uma forma inédita. Lendo Primo Levi e a poesia, também entendi melhor o que é o objeto voz e o que ele tem de tão radical. Saio também dessa leitura com algo precioso em mãos, na medida em que me ensina algo correlacionado à ironia, o oxímoro – que, em Levi, se configura como uma formação de compromissos entre forças opostas – e que lembra o leitor que, no centro da língua de Primo Levi, mas talvez não só, há um troço, um nó sem solução, perceptível apenas na evidência dessa figura retórica que nega e, ao mesmo tempo, afirma. E, com o qual ele extrai um pedaço de Real.
Lucíola, esse livro – o segundo que você escreve e publica sobre a escrita de Primo Levi, sem contar a tese que deu origem a Primo Levi e a escrita do trauma – permite supor que a escrita de Levi teve e continua tendo um efeito na sua formação como psicanalista. E mais: permite supor que, de alguma forma, você busca transmitir aos seus leitores algo que tanto parece ter te tocado. Então, o que Primo Levi te ensina e te transmite de mais fundamental? O que, na sua prática clínica, muda depois de ter tido contato com sua obra e poesia? Por que ler Primo Levi?
Tatiane Grova Prado
Gostaria de destacar duas breves passagens do livro de Lucíola. A primeira: “Se existe uma marca no passado, ela estará mais próxima de uma escrita.”[10] E a segunda: “Trata-se menos de transmitir conteúdos que certa qualidade de silêncio.”[11] Essa “certa qualidade de silêncio” aparece em algumas passagens do livro que capturam algo, com a nossa língua, que são nuances muito interessantes, simples e refinadas. Minha pergunta tem a ver com esse refinamento que ela entrevê no trabalho do Primo Levi.
Me chama muito a atenção o que Lucíola, com o seu trabalho de intensa investigação, destaca no que diz respeito a uma “estética do fragmento”. Me parece que isso, ao mesmo tempo em que está nos primórdios da psicanálise, é também de uma atualidade importante, não só do lado da experiência do analisante – podemos ver isso em testemunhos de passe –, como na do analista na escrita do caso clínico.
Em Análise e síntese em Freud, Regnault[12] localiza duas passagens de Freud que foram interessantes de encontrar para hoje, justamente quando falamos de Primo Levi, um químico de formação. Nessas passagens, Freud recorre à química para falar do método de decomposição em elementos que fundamenta e nomeia a psicanálise (não se trata de psicossíntese)[13].
Esse caráter fragmentário da escrita do Primo Levi, que podemos considerar que está presente na escrita seja do caso clínico ou na do passe, é uma espécie de condição possível tanto para a literatura de testemunho quanto para a psicanálise. Podemos ver a incidência da palavra “fragmento” no título do caso Dora, por exemplo. No testemunho de passe da Ana Lucia Lutterbach, outro exemplo: ela diz dos vestígios e sobras com os quais lidou para escrever seus textos.
O que nessa pesquisa com Primo Levi, principalmente nessa estética da lacuna, do fragmento, Lucíola encontra de ressonância que faz a clínica avançar?
Ana Lucia Lutterbach
Fiquei pensando sobre o fato de que Lucíola já havia feito uma exaustiva pesquisa no seu primeiro livro em torno da escrita de Levi, Primo Levi, a escrita do trauma. Ali, porém, tratava-se de uma escrita de pesquisadora. Neste, temos a escrita de uma escritora, que se serve da pesquisa, é claro, mas de um modo muito diferente.
Quando peguei o livro, antes de abrir, vi somente o título: Primo Levi e a poesia. Sabendo que Lucíola se interessa muito pela questão do testemunho – inclusive, no outro livro, ela trabalha sobre isso; e sei que a questão do testemunho faz parte da pesquisa dela –, pensei que ela fosse explorar um pouco mais a diferença entre testemunho e poética, entre testemunho e poesia: o que se transmite em cada um.
Permaneci com a impressão, durante a leitura do livro, de que tem algo do trauma que talvez só possa passar na poesia. Quando Primo Levi fala do testemunho, ele diz que é impossível testemunhar aquela experiência – a dos afogados – e que ele se sentia sempre em dívida, tentando transmitir essa experiência de trauma e de horror. Gostaria que você falasse um pouco sobre isso. Como você vê a diferença entre a escrita no testemunho e na poesia? Surpreende-me, ainda, que Levi já fizesse poesia antes de ir para o campo de extermínio. Gostaria de ouvi-la sobre esse aspecto.
Lucíola Macêdo
É uma alegria enorme trazer Primo Levi e a poesia para a Seção Rio e para a Biblioteca, sobretudo.
Quando recebi o convite, eu disse que nesse livro há muitas frentes de leitura. Então, pedi que me situassem um pouquinho sobre o que interessou aos leitores, para que eu possa pensar um caminho de elucidação em relação às questões e ao que a escrita desse livro me ensinou. Quando vamos escrever um livro, sempre nos deparamos com alguma coisa que a gente ainda não sabe o que vai ser, com algo que nos conduz.
Por que Primo Levi é um autor tão infinito para mim? O que posso dizer disso? Entrei em contato com a escrita do Primo Levi muito jovem. Eu era adolescente, estudava no liceu científico, na Itália, e tinha um clube do livro paralelo, dos livros que não líamos na escola – como Gide e Pasolini. Naquele ano, Levi havia falecido, e um dos seus livros circulou por esse clube. Foi o único livro que eu não consegui avançar, nem acabar de ler: era o É isto um homem?. Naquela época, que eu encontrei com o Primo Levi, já escrevia poesia – minha relação com a poesia é anterior à psicanálise. Comecei a escrever poesia antes, quando eu comecei a escrever. Também publiquei poesia muito cedo, ainda adolescente.
Levi veio antes da psicanálise. O sonho e a escrita poética, como irrupções do real, também vieram antes da psicanálise. Passadas décadas, mais de duas, encontrei novamente o Primo Levi. Eu não busquei isso, não pensava em escrever sobre ele. Mas eu tinha um tema na minha tese de doutorado, que era o testemunho, o real e a política em Lacan e Agamben – eu queria fazer um diálogo entre os dois, na época. O tema do testemunho estava lá, eu realmente me interessava muito por isso, em 2010 – já faz bastante tempo. Fui ler O que resta de Auschwitz[14], de Agamben, e lá ele trabalha Os afogados e os sobreviventes[15], do Primo Levi. Então pensei: “Tenho que ler Primo Levi”. Eu não tinha uma recordação vívida daquele momento da juventude.
Quando comecei a ler Os afogados e os sobreviventes – dessa vez eu consegui, muito lentamente, concluir a leitura –, aquilo lá de trás voltou: “Gente, eu já li Primo Levi!”. Aquele livro me provocou muito. Eu já não queria mais pesquisar Agamben, eu queria ler mais Primo Levi. E a tese acabou virando uma tese sobre ele. Mudei de tema, fui ao Centro Primo Levi, na Itália. Acho que isso é da ordem de um acontecimento, esse encontro com esse autor. Vou falar aos pouquinhos sobre o que há de acontecimento nesse encontro.
Depois, pouco antes de concluir a tese, recebi o convite da editora Subversos para publicar aquela pesquisa. Já falava sobre ela em alguns lugares, e alguns dos colegas que estão aqui já haviam lido algo sobre isso. Eu aceitei na hora. Falei: “Vamos nessa!”. Foi o primeiro movimento de retrabalho da tese, que foi escrita em uma linguagem acadêmica. Então vieram os primeiros leitores: meu próprio orientador, o Antônio Teixeira, e Romildo do Rêgo Barros, que escreveu o prefácio. Esse convite veio também a partir de uma transferência de leitura e de trabalho com essas pessoas.
Algo que me surpreendeu é que esse livro foi lido por muitas pessoas de outras áreas, de fora da psicanálise. Eu recebia muitos contatos e retornos de pessoas que não eram da psicanálise. Além disso, tive uma surpresa muito grande quando alguns desses leitores voltaram a me procurar depois de dez anos. Pessoas que estavam escrevendo sobre isso. Newton Bignotto[16], que escreveu o texto da orelha, por exemplo, estava – e está – escrevendo um livro impressionante em que aborda o testemunho de mulheres sobreviventes. Depois, uma colega da Argentina, com quem trabalhei na época do Projeto Clínicas do Testemunho[17], me disse que estava trabalhando em um livro[18] sobre os testemunhos de sobreviventes da ditadura argentina e que Primo Levi, a escrita do trauma havia sido uma referência importante para ela. Isso me fez lembrar de algo que aconteceu na minha banca de doutorado, quando um dos participantes disse que gostaria de ler o ensaio literário que via existir dentro da minha tese.
Nesse movimento, descobri que um livro é um corpo vivo. Uma escrita é um corpo vivo. Quando um tema nos toca particularmente, isso não acaba. Eu diria que nessa escrita houve três tempos: a tese; o livro com a Subversos; e esse ensaio, que saiu pela Editora 7Letras, veio de um movimento de reler, escutar e operar uma mudança de linguagem – o que é muito forte nesse livro –, bem como um tempo de trabalho com a poesia, sobretudo. É quase como se eu tivesse extraído o que eu diria ser o corpo nu do texto. Retirei as camadas de teoria e imiscuí a teoria no texto. Usei um procedimento do Levi, que é o hibridismo: uma certa forma de enxertar a teoria no texto, ao invés de usar a teoria para ler o texto. E então saiu esse livro.
O proceder por fragmentos
Agora vou começar a falar um pouco sobre onde essas coisas se comunicam: a escrita, a escuta, um pouco da poesia e o testemunho, o fragmento na clínica e o fragmento na poética do Primo Levi.
Uma das coisas que o Primo Levi me ensinou com a escrita dele é que ele tomou o fragmento quase como um método – não como método escolhido racionalmente, mas como única maneira de abordar aquilo que era tão inabordável. Ao mesmo tempo, a partir de uma necessidade urgente de abordar aquilo. Aqui já tem um nó. O fragmento produz uma redução, inclusive em termos biográficos – e Levi trabalha com essa redução constantemente: ele reduz a biografia. Quando pensamos que a autobiografia dele é A tabela periódica[19], no livro ele se serve dos elementos químicos e os utiliza para nomear passagens da própria existência. Como uma espécie de cifra. Se fôssemos pensar no imaginário da biografia, ele procede a uma redução. Como ele faz isso? A partir do corte, do recorte e da montagem – é o que Ernesto Ferrero[20] chamou de “escrita Lego”. Lego, aquele brinquedo de criança. É como se fossem microunidades. Diante do indizível, do impronunciável, do que resta daquela experiência e do lacunar, em seu esforço de narrar, ele recorre também a uma espécie de método do químico. A química tem suas fórmulas compostas por letras e números. Primo Levi faz uma espécie de evocação desse aspecto através da linguagem cifrada, matemática, como se desejasse aceder a uma unidade mínima na hora de abordar aquele tema – porque essa seria a única maneira.
Há algo que é muito importante na obra dele e que mudou minha maneira de entender o imaginário na psicanálise. Houve uma época em que parecíamos estar frequentemente desprezando o imaginário – aquele da história familiar, que fica rondando e fazendo uma cobertura para nunca chegarmos a outro lugar. Entretanto, para um escritor, o imaginário tem uma função muito importante.
O Levi procedia por essa escrita Lego através das imagens com que ele enfrenta o silêncio do Real[21]. Isso tem a ver com a pergunta da Tatiane sobre uma certa qualidade do silêncio. A escrita dele teria mais a ver com a mostração do que com a explicação ou com a representação. Ele aborda o silêncio do Real com imagens escritas, com pequenas cenas ou com as imagens indeléveis. As imagens indeléveis vêm do sonho traumático recorrente. O poema seria essa microunidade mais mínima de todas. Os poemas do Levi são breves, ricos, mas também crus. Não é o poema do lirismo. Muitas pessoas me perguntavam, quando eu falava sobre o último movimento – A política é a poesia do sonho –: “O que é isso?”. É a poesia nesse lugar da crueza, nesse lugar do despertar que fura a homeostase para poder transmitir algo.
Dessa forma, a escrita poética se faz a partir dessas microunidades: da cifra – que vem da química e de uma necessidade da redução; e das imagens, daquelas indeléveis, como irrupções dos pesadelos recorrentes, e também das imagens escritas, aquelas com as quais ele enfrenta o silêncio do Real.
Vou dar dois exemplos do que é essa imagética, ambos presentes na obra É isto um homem?. Cito:
O desfecho chegou de repente. A porta foi aberta. A escuridão retumbou com ordens estrangeiras. E com esses bárbaros latidos dos alemães ao mandar. Parecendo querer libertar-se de uma ira secular. Vimos uma larga plataforma iluminada por holofotes. Mais longe uma fila de caminhões. Em seguida, silêncio. Tudo era silêncio. Como num aquário. E como em certas cenas dos sonhos[22].
Uma banda de música começa a tocar ao lado do portão do campo. Isso na chegada. Toca Rosa ao Mundo, essa música popular sentimental. E lá parecem nossos companheiros voltando em grupos de trabalho. Marcham em filas de cinco, com um andar estranho, não natural, duro. Como rígidos bonecos feitos só de ossos. Marcham acompanhando exatamente o ritmo da música[23].
São imagens, ou cenas. Muitas cenas que estão nos contos retornam na poesia. Há um certo hibridismo. Voltarei a isso mais adiante.
Vou seguir dizendo algo mais a respeito do fragmento: existe uma relação muito íntima com a invenção. Na pesquisa, fui percebendo quantas ocorrências da palavra “cinzento” havia nos textos de Levi. Fui acompanhando e mostrando essas ocorrências que são de diferentes tipos: na poesia, no testemunho, em A tabela periódica. Essa palavra (cinzenta/o) aparecia de modo abundante e recorrente. Percebi que “cinzento” vinha, de certa forma, como uma imagem indelével. Ao longo da obra, ela foi se tornando uma metáfora, e depois, um conceito, a zona cinzenta.
Em Levi, a poesia não é o oposto da política. Há um imiscuir-se da poesia no testemunho e do testemunho na poesia, ao ponto em que, em um certo momento, ele extrai dessa operação um conceito sociológico e político tão inovador e fundamental como é zona cinzenta. Dito isso, passo para a questão da escrita do testemunho e a escrita poética.
A escrita do testemunho e a escrita poética
Sobre a pergunta que Ana me fez a respeito da relação entre a escrita do testemunho e a escrita poética, acredito que existe uma aproximação dessas duas escritas que partem, pelo menos em Levi, do Real. Em Levi, a poesia assume uma função antecipatória. Ele diz que a poesia se constitui como um contracanto em relação às páginas testemunhais sobre o campo de concentração. Todos os livros de Levi trazem poemas como epígrafes. O poema irrompe: é do real como irrupção e como disrupção que se trata. Como irrupção: vem à revelia dele mesmo; como disrupção: aquilo que interrompe e muda o curso de algo.
O que pode explicar a anterioridade lógica da poesia em relação à narrativa em prosa? Levi já escrevia poesia antes, e também prosa. Minha hipótese é que esse horror – e a passagem ao trauma – encontram, através da escrita e na estrutura do poema (estrutura que tem a ver com disrupção, com a contingência e mesmo com o lacunar) um lugar de inscrição.
Gostaria de destacar dois pontos nas relações entre testemunho e poesia. O primeiro: acredito que testemunho e poesia são formas de escrita que partem do real. Em várias ocasiões, Levi declara que a poesia era, para ele, totalmente fora de controle, como uma infecção viral – que ele descreve como um fenômeno que não conhecia e sobre o qual não sabia teorizar. Refutava o seu mecanismo, mas a poesia produzia fulgurações irresistíveis que contrariavam seu modus operandi naturalmente metódico, afeito ao estilo do montador, de construir por partes. Ele disse:
Em alguns momentos, a poesia me pareceu mais apropriada que a prosa para transmitir uma ideia ou imagem. Não sei dizer por quê. Nunca me preocupei quanto a isso. Conheço pouco as teorias poéticas. Leio poucos poemas de outros. Não acredito na sacralidade da arte e nem mesmo que meus versos sejam excelentes. Somente posso assegurar ao eventual leitor que, em raros momentos – em média não mais de uma vez por ano –, estímulos singulares assumiram naturalmente essa forma que minha metade racional continua a considerar não natural[24].
No testemunho, é como se isso chegasse depois da irrupção poética – dessa coisa que ele não controla. Mas mesmo nos testemunhos – sobretudo no primeiro –, não se trata de uma narrativa contínua; ele vai compondo por fragmentos. O único testemunho que escreveu de forma mais linear foi A trégua[25], já nos anos 1960. Ali ele já havia atravessado diversas experiências, escrito livros de contos. Foi algo mais pensado, nesse sentido. Ele dizia que os testemunhos tinham a ver com uma “escrita diurna” – que ele sentia que controlava um pouco mais –, enquanto os poemas e contos pertenciam a uma “escrita noturna”, por meio da qual era arrebatado.
Sobre a escrita poética como disrupção, ele diz:
Tinha a sensação de ter uma poesia no corpo, pronta para ser fisgada no voo e pregada no papel como uma borboleta. Tratava-se da mesma sensação que antecedia ataques epiléticos. Sentia a fulguração de um leve assovio nos ouvidos, um arrepio espasmódico percorrendo da cabeça aos pés. Dissipados o assovio e os espasmos, em poucos instantes achava-se lúcido, com o grão da poesia claro e distinto, irradiando-se em todas as direções como um organismo que cresce e treme, como se fosse alguma coisa viva. Tinha apenas que escrevê-lo[26].
Essa fala é de um personagem de um de seus contos, o qual padecia desses arroubos e que descreve perfeitamente a experiência imperiosa de Levi com a escrita poética. Ele precisou encontrar procedimentos e operações com a palavra que permitissem essa escrita – o que vale tanto para o testemunho como para a poesia. A criação tinha a ver com a impureza e com os hibridismos. O impuro – justamente o motivo pelo qual milhões de judeus foram levados aos campos de concentração – torna-se um elemento fundamental também em sua escrita e em sua poesia. O hibridismo, da mesma forma. É difícil falar sobre isso, por isso dou um exemplo. A principal figura de linguagem na obra dele é o oxímoro: essa figura de linguagem em que duas noções opostas são colocadas juntas, sem que uma anule a outra. O outro procedimento refere-se a essas combinações improváveis. Há um conto dele, o “Quaestio de centauris”, que considero maravilhoso. Em certo momento, diz ele:
Por que o Delfim é semelhante ao peixe, mas parteja e amamenta seus filhotes? Porque é filho do atum e de uma vaca. De onde vêm as cores graciosas da borboleta e sua habilidade de voo? São filhas de uma mosca e de uma flor. E as tartarugas? São filhas de um sapo e de um seixo. E os morcegos? De uma coruja e de um rato. E os moluscos? De um caracol e uma pedra polida. E os hipopótamos? De uma égua e um rio[27].
Ele constrói esse hibridismo também na própria escrita. Através da impureza, fazendo valer o seu veio de cientista, há também esse outro lado:
O anidrido carbônico – ou seja, esse gás que constitui a matéria-prima da vida, reserva permanente à qual recorre tudo aquilo que cresce e destino último de toda a carne não é um dos componentes principais do ar, mas um resíduo ridículo, uma impureza trinta vezes menos abundante que o argônio. Dessa sempre renovada impureza do ar, procedemos nós – os animais, as plantas e a espécie humana, com nossos quatro bilhões de opiniões discordantes, nossos milênios de história, nossas guerras, nossas vergonhas, nobreza e orgulho. Assim é a vida, embora raramente ela seja assim descrita: uma inserção de si, uma derivação em vantagem própria, uma parasitação do caminho descendente da energia. Esse caminho para baixo que conduz ao equilíbrio – ou seja, à morte. A vida desenha um arco e nele se aninha[28].
Nesse pequeno fragmento está condensado muito do que se encontra na escrita de Levi. A recusa de pensar o ser humano como separado da pedra, da planta, do peixe. A presença abundante dos animais. Isso está presente em muitos de seus poemas, sobretudo nos últimos anos. Vida e morte como feitas da mesma matéria, da mesma natureza. A poesia, nesse sentido, não tem a ver com o lírico, mas com algo agudo, pontiagudo, como um despertar, uma travessia.
Ainda sobre testemunho e poesia, ambos, em Levi, são formas de escrita que tratam do fim de um mundo, de uma época, ou de certo modo de viver e de morrer. Na psicanálise, o testemunho aparece como um modo de se concluir uma análise. É de um fim também, de que se trata – de um certo fim de um mundo e de um modo de estar no mundo. E acredito que aí reside uma aproximação entre o testemunho e a poesia.
O que Levi nos ensina?
Para retomar a pergunta sobre o que Levi me ensinou, trago alguns pontos do método primoleviano que me servem muito na clínica. Além disso, Levi era leitor de Freud. Acho que leu Freud inteiro. De vez em quando ele o menciona, mas ele não quis fazer uma análise. Não é incomum entre escritores: eles têm medo da análise – por um motivo que compreendo. O imaginário é muito importante para o escritor. Ele faz uma operação com o imaginário, e esse afã de reduzi-lo pode, de certa forma, secar a fonte criativa do escritor. Curiosamente, escritores parecem chegar à análise quando antes já haviam tentado de tudo. Existe esse receio, e Levi o tinha. Ele declara isso algumas vezes, em textos ou entrevistas. Na época, na Itália, o psicanalista era considerado alguém que “espreme o cérebro” das pessoas. Hoje não é mais assim, mas, logo após o retorno da guerra, esse era o imaginário em torno da psicanálise. Ainda assim, ele lia Freud intensamente. E escrevia.
O que aprendi com Levi? A não saturar de sentido o lacunar, o impossível de dizer, a opacidade, o deslocalizado, o disruptivo, a efração. É sempre preciso perguntar: o que com isso se escreve? Como escrevê-lo? Não apenas no sentido literal, mas nesse outro modo de escrita em psicanálise, que muitas vezes tem a ver com vestígio, traço, oco, resto, nada, sulcos – com essas outras coisas. Depois, o não-causal: essa escuta do que não se deixa apreender pelas malhas do sentido. De não querer forçar o sentido, onde talvez haja um caminho mais interessante, que pode ser inclusive o do silêncio, do ponto, da vírgula, de um urro, de um suspiro – como Lacan nos ensinou tão bem. Levi reafirma isso em sua maneira de trabalhar com a linguagem.
Aprendi também sobre as capturas e os registros da contingência, sobre a mostração – quando algo vem na forma de uma fulguração, uma epifania, e não por meio da representação retórica ou da causalidade. Daquilo que é “sem porquê”. Além disso, esses dois procedimentos – o oxímoro e o híbridismo – são verdadeiras invenções com as contradições. Ao invés do maniqueísmo – tão comum na vida –, Levi nos ensina que o díspar e o heterogêneo, que os polos contraditórios do oxímoro podem coexistir sem que um precise anular o outro.
O Levi também me ensinou que o luto nunca é completo, nunca é total – há sempre restos. Para o escritor, para o próprio Levi, e talvez para todos nós, há o que retorna nos sonhos, o que se repete, os espectros… Mas há invenções a partir dos restos do luto, em torno dos quais estamos às voltas, também, em situações não tão extremas quanto a que Levi viveu. Acredito que Levi ensina sobre a passagem do horror ao trauma. Estamos vivendo isso o tempo inteiro, porque há alguma coisa na pulsão de morte, alguma coisa nos extremismos, tem alguma coisa no humano, demasiadamente humano, e no mal em cada um, que o Levi faz passar ao dizer, ele faz isso passar à escrita. Sem jamais se colocar no lugar da “bela alma”. Ele toma isso como parte da vida, como parte do viver. Por isso, eu diria que essa escrita me atravessa.
Comentários dos participantes
Romildo do Rêgo Barros
Você diz que Primo Levi – como outros poetas, sobretudo na Europa – fala da morte, mas mais do que isso, fala sobre o fim do mundo… Você estava falando, e eu pensava: só quem pode falar, testemunhar sobre o fim do mundo é o morto. Não se pode, na vida, testemunhar o fim da vida. É interessante – algo sobre Primo Levi que eu sempre cito, é que ele diz que ninguém sobreviveu a Auschwitz. Todo mundo que foi para um campo do extermínio morreu. Então, como alguém pode dizer algo do lado da morte? Ele fez isso. Ele testemunhou. E, quando terminou de testemunhar, se matou. Como se fosse uma homologação do que ele já sabia há muito tempo. Primeiro: que estava testemunhando sobre o fim do mundo. E segundo: que só o morto pode testemunhar o fim do mundo.
Como se dá corpo a um paradoxo desse tamanho? Foi o que a leitura dele — e eu li vários livros, não sei se todos – provocou em mim. Ele provoca no leitor o que, no nosso meio, chamaríamos de “arrebatamento”. Não é muito frequente em mim esse arrebatamento por uma leitura, mas com Levi, sim. Ele me arrebatou. Sempre cito Primo Levi como alguém que se situa na fronteira entre a vida e a morte para mostrar um lugar que era de morte. Ele fala do lugar da morte para mostrar um lugar onde não havia vida. Politicamente, isso é uma contribuição extraordinária. Esse testemunho político, poético e de sonho. Uma contribuição que ficará para sempre. Nós devemos muito a Primo Levi. Assim como ao Jorge Semprún. Às várias pessoas que se ocuparam de cutucar essa fronteira entre o testemunho e o poético, que é um limite da vida. É isso que Primo Levi nos mostra.
Fátima Pinheiro
Pensei nessa junção entre o poético e o testemunho, como o Romildo apontou, que teria essa relação direta com a experiência do real. Uma experiência, no caso do testemunho, da parte traumática. E esse atravessamento no corpo da questão poética, que vem como uma irrupção. Há muitos poetas que também situam isso. Por exemplo, Guimarães Rosa dizia que saía correndo para sentar-se à mesa e poder escrever, porque algo era tomado no corpo – nessa própria experiência.
Gostaria, portanto, de localizar essa questão do acontecimento a partir da tentativa dele de dizer… Porque só há acontecimento, em Lacan, quando há dizer – tanto na via do testemunho, desse algo impossível de dizer, quanto na poesia, que também passa por essa relação direta com o real. Não só o real da contingência do encontro, mas também do impossível. Essa dimensão do Real nessas duas vias. Queria saber o que você pensaria sobre essa relação com o acontecimento.
Maria Sílvia Hanna
Gostaria que você me ajudasse a pensar no capítulo em que você fala do “vórtice”. Não conhecia essa palavra. Fui ao dicionário buscar. Vórtice é um redemoinho, uma espécie de movimento giratório. Esse recorte e citação que você faz do Primo Levi também me causaram muito impacto, porque ele se descreve como um homem comum. O Romildo diz: um homem já morto, de alguma maneira. Ele diz que caiu num vórtice, num redemoinho, mas que conseguiu sair dele. Mas, ao mesmo tempo, ele diz: “por sorte”. Como você falou, ele conserva um resto, que é uma peculiar curiosidade. Eu entendi que ele quer saber sobre outros vórtices. Se você quiser falar um pouco sobre como entende esse resto que o movimenta. Ele caiu, conseguiu sair e, a partir daí, leva esse querer-saber que se traduz nos testemunhos, nessa poesia que ele acata, que aparece nele, que ele deposita nos papéis.
Angela Negreiros
O Romildo usou uma palavra que eu também gostaria de usar: você é arrebatada pelo Primo Levi. Você foi falando e isso foi aparecendo no seu corpo. Estar aqui presente… Acredito que você fala desse encontro com ele como um acontecimento de corpo. Como se você também tivesse caído num certo vórtice. Existe toda uma teoria sobre vórtices – e também sobre conspirações –, mas nós fazemos outra coisa com isso. Gostaria de saber se você considera isso um acontecimento de corpo, e se esse trabalho no livro é o que você faz com esse acontecimento.
Lucíola
Vou começar pela última pergunta. Sim. Há uma entrevista que Fátima Pinheiro faz comigo, na época da escrita de Primo Levi, a escrita do trauma, em que falo um pouco desse encontro. Uma coisa curiosa: eu sempre escrevo um livro teórico junto com um livro de poesia. Sempre não… isso começou desde esse primeiro livro sobre o Primo Levi, e continuou dessa maneira. Até hoje tem sido assim. Acredito que a escrita do Levi me convocou, sim, nesse lugar. Tem a ver com restos, sintomas, o traumático de cada um – pude ir entendendo isso no meu próprio processo de análise, onde essa escrita me tocava, e podendo fazer disso causa de outras escritas também.
Sobre as questões relativas à morte, ao vórtice, elas se encontram, se articulam de alguma forma. Houve um acontecimento, uma contingência – para tomar o que a Fátima traz – que precisamos ler. Levi declara o impacto nele das teses negacionistas e revisionistas que despontaram no início dos anos setenta na Europa. Ele sobrevive, volta do vórtice, se interessa pelos vórtices, faz disso uma causa, um furo, um oco, a partir do qual escreve e vive. Mas as teses sobre a negação de Auschwitz tocaram Levi em um lugar muito sensível. Foi aí que ele começou a escrever Os afogados e os sobreviventes. Foram vários ensaios, que levaram dez anos para serem escritos. É o último livro que ele escreve. Há algo também da relação com a morte de quem sobreviveu a isso, o que aparece nos poemas do último período, como se houvesse certa continuidade em relação à morte como consequência da vida. Talvez o suicídio possa também ser lido como um ato dirigido ao negacionismo. Ele declara algumas vezes, em entrevistas daquele período, o quanto o negacionismo que se alastrava na Europa naquela época reacendia e presentificava para ele o impossível de suportar.
Ao mesmo tempo, ele escrevia muitas coisas – recentemente, escrevi um artigo em que busco entender a abundância dos animais na escrita tardia dele, e abordar por essa via o tema da morte. O acento trágico dos primeiros tempos, presente na ideia da metamorfose no conto “Borboleta Angelica”, e também a fratura subjetiva, presente em “Quaestio de centauris”, parecem sofrer uma espécie de mutação, desaguando, nos escritos da década de oitenta, num anseio declarado de escrever o homem em termos zoológicos, e não o contrário, o mais comum, que é antropomorfizar os animais. Assim como a tensão dual e a divisão profunda entre o humano e o animal, entre submerso e salvo, entre sonho e realidade, convergem para a sua escrita e seu modo próprio de mesclar gêneros e línguas, poesia e prosa – quiçá certa abertura arduamente perseguida em seu trabalho de decantação do inconsciente através da escrita tenha operado um quiasma entre mundos, entre vida e morte, entre o vórtice e a superfície das coisas vivas?
“Almanaque”[29], datado de 2 de janeiro de 1987, é o título do último poema escrito por Levi antes de pôr fim à própria vida. De modo certeiro e comovente, ele aborda o pendor humano para a destruição, e o que vem em sua esteira nos campos social e ambiental – a crise ecológica, o esgotamento dos recursos naturais, o impacto provocado pela exploração predatória da natureza, assim como os limites das filosofias e visões de mundo antropocêntricas – e preconiza: somente a Terra e as moscas sobreviverão à humanidade.
É notável como, nos escritos dos últimos anos, esse quiasma, e até mesmo certa continuidade entre mundos, entre o Lager e a vida cotidiana, faz-se extensível à natureza e à cultura, aos reinos humano, animal, vegetal e mineral.
A sua poesia tardia, assim como os últimos ensaios, mais parecem arautos de uma mutação de caos em vida, e de vida em morte, terreno fértil onde o seu “input híbrido” floresce e se consuma. Levi dignifica os animais como os mais humanos dos seres, e a metamorfose já não se faz de forma trágica ou cindida, como no início de seus exercícios de anfibiologia, mas de forma fluida, pacífica, com o consentimento de quem acolhe uma herança e nela se reconhece, como é possível notar no poema “Autobiografia”. De modo similar à já citada aventura do átomo de carbono, esse poema, que talvez nos ajude a concluir, diz dessa espécie de mutação. Ele começa com um fragmento de Empédocles que diz assim:
Outrora fui menino e menina, arbusto,
pássaro e peixe mudo que salta do mar
Sou velho como o mundo, eu que lhes falo.
Nas trevas do início
Borbulhei pelas fossas cegas do mar,
Eu mesmo cego, mas já desejava a luz,
Quando ainda jazia na podridão do fundo.
Engoli o sal por mil mínimas gargantas;
Fui peixe ágil e viscoso. Evitei emboscadas,
Mostrei aos meus filhos os meios tortos do caranguejo.
Mais alto que uma torre, ultrajei o céu,
Ao choque dos meus passos, montanhas tremiam
E minha feia desmesura obstruiu os vales:
As rochas do seu tempo trazem ainda
O sinete incrível das minhas escamas.
Cantei à lua o canto líquido do sapo,
E minha paciente fome perfurou o lenho.
Cervo, impetuoso e tímido
Corri bosques hoje cinzas, feliz de minha força.
Fui cigarra embriagada, tarântula astuta e horrenda,
E salamandra, escorpião e unicórnio e áspide.
Sofria chibata,
Calores e frios, e o desespero do jugo,
A vertigem muda do asno ao moinho.
Fui menina, hesitante na dança;
Geômetra, investiguei o segredo do círculo
E as vias dúbias de nuvens e ventos:
Conheci o pranto e o riso, e muitas vênus.
Por isso não riam de mim, homens de Argrigento,
Se este velho corpo está marcado por estranhos sinais[30].
Transcrição: Isabela Correia Machado
Preparação do texto: Lourenço Astúa de Moraes e Ana Maria Ferreira da Silva.

