Bruna Borges de Araújo Bulhões
Quando recapitulamos Lacan em “A direção do tratamento e os princípios de seu poder” (1958), encontramos a célebre frase: “Também o analista tem que pagar: pagar também com sua pessoa, na medida em que, haja o que houver, ele a empresta como suporte aos fenômenos que a análise descobriu na transferência”[1]. Mas, que corpo é esse, afinal, que o analista empresta à transferência? Corpo e presença do analista estão intimamente ligados. Desde “A dinâmica da transferência” (1912), Freud já considera o corpo do analista como alvo de “um clichê estereotípico constantemente repetido, constantemente reimpresso, no decorrer da vida de uma pessoa”[2]. Aquele que se depara com o analista, quando é possível estabelecer um laço analítico, o inclui em sua economia libidinal, uma vez que se serve desse corpo para depositar cargas libidinais em busca de satisfação. Entendemos que essa libido se conduz a partir dos trilhamentos particulares constituintes de cada sujeito. É, portanto, o modo peculiar que cada um, como propôs Freud, decide por conduzir sua vida erótica. Como pode o corpo do analista, diante dessa carga libidinal, ter função de presença? Nós nos orientaremos pelo que Lacan formula no Seminário 11, lição 10: “A presença do analista é ela própria uma manifestação do inconsciente”[3].
A questão do corpo e da presença do analista é convocada a partir das 32ª Jornadas Clínicas deste ano, cujo tema é a transferência. Lacan, no Seminário 16, De um Outro ao outro (1968-1969), estabelece o conceito de transferência pela relação de suposto saber, “na medida em que ela é estrutural e ligada ao lugar do Outro como o lugar em que o saber se articula, ilusoriamente como Um”[4]. Cabe ao analista incitar o sujeito – nas palavras de Lacan – ao saber que deve conduzi-lo à verdade, a qual sabemos ter caráter ficcional.
Para estar incluso nesse jogo que se estabelece na situação transferencial, o analista precisará não somente consentir com esse caráter ficcional da verdade como ele próprio deve encarná-la, visto que ocupará o lugar de objeto a, “representante da hiância dessa verdade desejada”[5]. Nessa cena, o corpo do analista ancora a ficção de que há um saber a ser produzido:
Comecemos por lembrar o que resulta dessa maneira de situar, entre o saber e a verdade, o campo próprio de uma produção que vocês vêem que, em suma, é o próprio psicanalista que encarna, que encarna essa produção.
É nesses termos que deve ser situada, por exemplo, a questão do que se dá com a transferência[6].
Ou seja, não se trata apenas de um corpo-orgânico, mas de suporte de um saber inconsciente que se manifesta ao longo de uma análise. É nesse ponto que a função do corpo do analista se aproxima do semblante de objeto a: não há o que se oferecer a não ser a sustentação da falta em jogo na transferência.
Para que esse corpo possa assumir o lugar de suporte da transferência e, portanto, seja elevado à função de presença, é preciso que esteja orientado precisamente pela regra da abstinência, no sentido de que não haverá como devolver ao analisante aquilo que ele solicita para abster sua falta. Isso porque essa demanda, nas indicações de Lacan, é intransitiva, ou seja, não implica nenhum objeto:
Naquilo que ouço, sem dúvida, nada tenho a replicar, se nada compreendo disso ou se, ao compreender algo, tenho certeza de estar enganado. Isso não me impediria de responder. É o que se faz, fora da análise, em casos similares. Eu me calo. Todos concordam em que frustro o falante, […].
Se eu o frustro, é que ele me demanda alguma coisa. Que eu lhe responda, justamente. Mas ele sabe muito bem que isso seriam apenas palavras […]. Essas palavras não são o que ele me pede. Ele me pede… pelo fato de que fala: sua demanda é intransitiva, não implica nenhum objeto.
[…] Mas essa demanda, ele sabe, pode esperar. Sua demanda atual nada tem a ver com isso, nem sequer é dele, pois afinal, fui eu que lhe fiz a oferta de falar[7].
Ainda que não possa ser respondida, é com essa demanda que se sustenta o trabalho analítico. A presença do analista implica mantê-la em suspensão, não com o propósito de frustrar diretamente o sujeito, mas para que “reapareçam os significantes em que sua frustração está retida”[8]. É para isso que se paga, como nos diz Lacan: “por esse nada […] de outro modo não valeria tanta coisa”[9]. Talvez por isso ele afirme que “O analista cura menos pelo que diz e faz do que por aquilo que é”[10]. Esse “ser”, no sentido em que estamos trazendo, designa uma função, função esta que faz operar a transferência e que, como já mencionamos, é “ela mesma a manifestação do inconsciente”[11].
Para isso, Lacan pressupõe uma posição na qual a escuta renuncie à tentativa de compreensão e enfatiza que o analista convoque a ajuda do que nesse jogo é chamado de morto, já que o que há de certo é que é apenas este o lugar possível para os sentimentos daquele que analisa[12]. O “morto” a que Lacan se refere não diz respeito a uma falta de presença; ao contrário, designa que, para haver presença, é preciso que o analista esteja avisado do lugar que seu corpo deve ocupar: objeto a.
[1] LACAN, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder. (1958) In: LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 593.
[2] FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência. (1912) In: FREUD, Sigmund. Escritos sobre a técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Imago, 1996. p. 97-108. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, XII)
[3] LACAN, Jacques. O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (1964) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. p. 121. Grifo nosso.
[4] LACAN, Jacques. O seminário, livro 16: De um Outro ao outro. (1968-1969) Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008, p. 337. Grifo nosso.
[5] Ibid., p. 336.
[6] Ibid., p. 337.
[7] LACAN, 1958/1998, op. cit., p. 623. Grifo nosso.
[8] Ibid., p. 624.
[9] Ibid., p. 624.
[10] Ibid., p. 593.
[11] LACAN, 1964/1998, op. cit., p. 121.
[12] LACAN, 1958/1998, op. cit., p. 595.

