Ana Maria Ferreira da Silva
Pode-se considerar que o cinema é uma cadeia simbólica que faz sentido através de uma sutura entre os três registros lacanianos: o Real, o Simbólico e o Imaginário. A cadeia significante não tem um sentido prévio; seu valor de realidade está nos efeitos que ela produz. Segundo Jean-Claude Carrière, o cinema pode literalmente nos possuir; ele se apodera de nós, nos domina e manipula, e ainda nos absorve e nos ilude[1]. O olhar do espectador contorna o real entre o visível e o invisível, produzindo uma sutura[2]. No entanto, em toda sutura há um resto, algo que escapa da cadeia significante, algo da ordem do invisível.
Lou Bloom é o protagonista do filme O Abutre[3]. Homem solitário que memoriza textos da internet sobre todo tipo de assunto, ele rouba peças de arame e ferro para revender, ao mesmo tempo em que sonha se tornar respeitado e bem-sucedido financeira e profissionalmente. Ao testemunhar um cinegrafista registrando um acidente de carro para vender as imagens aos telejornais, Bloom decide ser esta sua meta profissional. A partir de seus sonhos de grandeza, inicia a atividade comprando um rádio de polícia, para localizar cenas de crimes e acidentes, e uma câmera de vídeo, para filmar as vítimas. Ele só consegue atingir seus objetivos porque existem no mercado midiático emissoras de televisão que ganham muito dinheiro com a transmissão dessas imagens, em que as vítimas são bem de vida, pessoas brancas feridas pelos pobres ou por uma minoria.
No Brasil, esse mercado midiático pode ser caracterizado pelo jornalismo de emissoras de televisão que têm como objetivo comercializar a desgraça alheia. O olhar criado pela mídia não é o mesmo olhar da experiência vivida pelo corpo próprio. As referências de tempo e espaço são modificadas, o tempo é o “agora” de Aristóteles, instantâneo, “um presente do qual se subtraiu toda a duração”[4]. E os significantes são preestabelecidos, produzindo uma significação cristalizada em valores impostos pela sociedade vigente. Assim, o espectador se identifica com a imagem que inclui esses valores. Nesse sentido, a imagem substitui a palavra como signo da realidade; seu valor está nos efeitos que ela produz. Essa realidade faz com que o real não nos assole, não produza furo, que seja algo esperado, conhecido, sem surpresa.
Como nos assinala Marcus André Vieira, “as imagens hoje são companheiras tão reais quanto grande parte dos objetos com que lidamos”[5]. As imagens capturadas pelo protagonista do filme são semblantes de corpos que carregam toda a mensagem que querem transmitir, uma manipulação midiática que tenta impingir uma interpretação maciça, deixando pouco espaço para o acontecimento. No entanto, a imagem, ao se inserir na cadeia significante, produz um resto, o objeto olhar, que a faz girar.
No Seminário 11, Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, Lacan trata da esquize do olho e do olhar. Ver não é igual a olhar, “é aí que se manifesta a pulsão no nível do campo escópico”[6]. Ver é função do olho, enquanto olhar é objeto da pulsão. O olhar, como objeto, longe de assegurar a possibilidade da visão, é o que não deixa ver o objeto, porque o atravessa. Há, segundo Lacan, um certo triunfo do olhar sobre o olho que reside no fato de que aquilo que o olhar fixa enquanto objeto é algo que não reflete como imagem. Lacan aborda o objeto olhar como mancha, algo que desfaz os contornos do eu[7]. Por isso, para ele, o olhar adquire um estatuto ontológico na constituição do ser humano. “Uma vez que o sujeito tenta acomodar-se a este olhar, ele se torna, esse olhar, […] com o qual o sujeito confunde seu próprio desfalecimento.”[8]
Podemos, então dizer que, desse modo, a imagem se insere na cadeia significante a partir do objeto olhar e, ao fazê-la girar, possibilita que o espectador construa, com a função desse objeto, uma nova realidade.

