O Seminário de Orientação Lacaniana da EBP-Seção Rio, em 2025, coordenado por Romildo do Rêgo Barros, tem como tema Uma orientação para o Real. Do encontro inicial, que tanto me provocou, seguem algumas linhas de reverberação.

Durante a apresentação de Romildo, no curso de suas considerações e de suas pausas, pude ouvir de um novo lugar algo que não é novidade, mas que, ainda assim, me surpreendeu. Ele apresentava considerações sobre os fundamentos do retorno de Lacan a Freud, tomando como base a conferência “O Simbólico, o Imaginário e o Real [1], proferida nos anos 50. Em certo momento, destacou o modo como Freud acrescentava algo de história ao emaranhado de queixa e sofrimento presente nas falas de seus pacientes.

Sabemos que Lacan empreendeu um retorno a Freud revelando, em seu texto, camadas obscurecidas pelo manto da psicologia do ego. Ele apostou na letra freudiana e não fez disso apenas uma metáfora: o efeito de leitura produzido por sua incursão funciona como a chave que abre, no texto freudiano, veredas que seguem nos convidando ao trabalho. Como podemos ler na abertura dos Escritos: “Eis exatamente a questão que nos coloca esse novo leitor do qual foi feito argumento para reunirmos estes escritos.”[2]

Não é incomum ouvirmos o quão “mais fácil” é ler Freud quando comparado a ler Lacan. À primeira vista, o estilo freudiano nos coloca frente aos casos clínicos praticamente como romances, recheados de toda sorte de tramas e de dramas. Do mesmo modo, ao nos debruçarmos sobre seus ensaios, encontramos um prazer da narrativa que nos enleva.

Com a lupa de Lacan, esse estilo se esgarça para que se revele uma arquitetura minuciosa, permitindo-nos vislumbrar a construção do edifício freudiano, com suas arestas e seus pontos de fratura, marcas de uma obra inacabada. Nesse sentido, destacar que Freud, ao receber seus pacientes, enxerta algo naquilo que ouve produz reviramentos quanto ao modo de ler sua obra e, também, quanto ao próprio fazer analítico.

Orientado para e pelo real, o encontro com a psicanálise deixa sempre algo por se fazer, por se produzir em torno de cada caso, de cada conceito. No trabalho que se instala na experiência de cada analisante, seja ele praticante ou não, algo de si é convocado. Somos necessariamente levados ao lugar do leitor que, ao colocar algo de si, também escreve.

A escolha pelo verbo enxertar é aqui uma decisão que se impõe por incluir respostas frente à fratura entre imaginário e real, entre o corpo e a pulsão ou o gozo. Essa fratura se manifesta nos sintomas que indicam a Freud a não localização do corpo pulsional sob os contornos anatômicos. A enxertia freudiana subverte a concepção corrente, presente na tradição, de que a psicanálise é a cura pela palavra. Ao analista cabe colocar algo nisso que faz.

Pensar o que pode se enxertar nessa fratura é o avesso de pensar que o tratamento se limita a escutar e interpretar, revelando sentidos escondidos. Com Lacan, a chave que abre o caminho da radicalidade de Freud é “o objeto que responde à pergunta sobre o estilo”.[3] Um objeto que é perda, é causa e é furo, que se enxerta por acréscimo ou subtração.

Nessa direção, retomar Freud e sua estratégia clínica, lida a partir de Lacan, me leva a pensar na clínica de nossos dias. Creio que, quando Lacan nos adverte, em Função e campo da fala e da linguagem[4], de 1953, de que o psicanalista precisa estar à altura da subjetividade de sua época, não se trata apenas de uma chamada à aplicabilidade de uma leitura da cultura aos manejos da clínica. Ao psicanalista cabe extrair-se de suas próprias identificações, tomar a boa distância das identidades que compõem sua pessoa para saber ler, a cada caso, como se enodam os registros – real, simbólico e imaginário – que margeiam a existência de cada um, ancorados na subjetividade de uma época e, portanto, não sem ela.

Partindo dessa perspectiva, recorro ao artifício, um quase-conceito, uma noção, uma ferramenta operatória que pode encarnar muitos recursos cunhados por Lacan para lidar com o real inapreensível, sem deixá-lo, no entanto, cair na vala comum do inefável. Ferramenta inequívoca, o artifício constitui a própria base do dispositivo analítico, uma situação artificial cujo motor – e obstáculo – é, no entanto, um amor verdadeiro[5].

Inicialmente, pode-se tomar o aspecto verdadeiro do amor em Freud como a encarnação daquilo que o sujeito dirige ao Outro. Numa volta a mais, Lacan propôs no Seminário, livro 10 que “o amor é o que pode permitir ao gozo condescender com o desejo”. [6]

Quanto à posição do analista, no entanto, é preciso ainda outro passo. Amor, desejo e gozo compõem uma tríade que convoca o objeto para o centro da experiência analítica, não sem nos interrogarmos sobre o que restaria do Outro nessa trajetória.

Se tomamos, assim, o amor mais além do narcisismo e fora do circuito da falta simbólica – na compensação fálica do “dar o que não se tem” –, devemos perseguir, com Lacan, a pergunta sobre o verdadeiro no amor, no sentido do real. Que artifício, então, poderia sustentar a queda dos ideais, a fratura do Outro e a própria impossibilidade de escrever a relação, senão o desejo de analista que cada analisante pode vir a encarnar na virada de sua passagem a analista?

Sem apoio nas coordenadas de um mundo onde o Outro dava as cartas, podemos seguir as orientações que, desde Freud, balizam um fazer inédito, renovado a cada vez, no encontro com cada caso. Somente com as ferramentas de sua própria análise o analista poderá cavar a posição de objeto causa de desejo na transferência. É com o desejo de analista, seu próprio artifício, que alguém pode emprestar-se a essa invenção que se aloja no amor. Assim, como parceiro inédito, mas certamente não fazendo um par, o analista poderá iniciar uma partida.

 

[1] Lacan, J. (1953) O Simbólico, o Imaginário e o Real. In: __. Nomes-do-Pai. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005.
[2] Lacan, J. (1966) Abertura desta coletânea. In: __ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.10.
[3] Lacan, J. (1966) “Abertura desta coletânea”. In: __ Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.11.
[4] Lacan, J. “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise”. 1953 In: __Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998, p.322.
[5] Freud, S. (1915 [1914]) “Observações sobre o amor de transferência (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III)”. In: __ Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Vol: XII. Rio de Janeiro: Imago, 1996, p. 185.
[6] Lacan, J. (1962-1963) O Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p.10.

Deixe um comentário

Seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios estão marcados *

Postar Comentário