O Menino do Lobo
Rachel Amin de Freitas: Neste Seminário de Orientação Lacaniana, destacamos, sobretudo, o ponto em que Miller se dedica a trabalhar no seu curso O Um sozinho[2], o fundamento do Um do gozo opaco. Quando a linguagem é apreendida no nível do que se imprime sobre o corpo — lalíngua — essa marca comparece como gozo desregulado. Uma possível solução para a localização desse gozo desregulado e o destacamento da letra se dá com a inscrição de um vazio.
Miller chama de “último ensino” o momento em que Lacan se dedica à questão do Campo Uniano, aquele que passa a existir pela incorporação do significante Um, ressaltando que Lacan nunca deixou de se questionar como a linguagem estruturaria o psiquismo, mesmo em seu último ensino, quando se dedica a questionar sobre o real, sobre a relação entre o Um e o Outro, sobre o Campo Uniano e sobre o gozo. Miller aponta que a compreensão do que se trata no último ensino de Lacan se manifesta no desnivelamento entre o Ser e a Existência. O Ser é um ser de fala, que traz ficções que são entidades enunciadas e religam um nome a uma propriedade. A existência, por outro lado, nos leva a tomar a linguagem por um viés que não é o da fala. É preciso tomá-la ao nível da escrita. Uma escrita que Lacan dirá, no último ensino, que é onde devemos encontrar nosso ponto de orientação a respeito da prática.
Assim, Lacan visa, com a existência, a ir à escrita primária, a uma experiência. A uma imersão no banho de lalíngua, no enxame de S1 e consequente à marca deixada no corpo de suas ressonâncias. Lacan esclarece que, na constituição do parlêtre, existem duas materialidades fundantes que se encontram e se entrelaçam, dando nascimento ao Campo Uniano, trata-se da materialidade sonora do significante e a materialidade física do corpo biológico.
Essas materialidades se transformam em gozo fora do sentido. O gozo do Um, da substância gozante, é atribuído ao corpo com a condição de se definir apenas como aquilo que se goza. Há um acontecimento de corpo inaugural em que o corpo biológico vivo se torna vida humana, a partir do atravessamento do corpo por lalíngua, que promove ressonâncias e faz o corpo vibrar.
Lacan sublinha que o Um introduz um distúrbio no gozo, por ser opaco, fora de sentido, e, por isso, se faz necessária sua localização e seu esvaziamento. Daí a necessidade da instalação de um vazio e do destacamento da letra. Lembremos que, na teoria dos conjuntos, se inclui o conjunto vazio, sendo ele o que poderá dar curso à construção de um corpo em que a cadeia significante possa se alojar e, com ela, o próprio circuito da pulsão.
É somente se essa operação tiver ocorrido, se o S1 tiver sido inscrito, que o sujeito poderá acreditar que existe um corpo e fazer uso dele, assim como também será capaz de investi-lo.
Pequena introdução
Trago um pequeníssimo recorte do comentário de Miller a respeito do caso do Menino doLobo,[3] atendido por Rosine Lefort, aluna e supervisanda de Lacan, e apresentado por Lacan no Seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud.[4] Miller, em seu texto A matriz do tratamento do Menino Lobo[5], toma esse caso como uma verificação da psicanálise.
Há uma transformação no destino desse menino, exemplificada por duas frases de duas enfermeiras. Assim, destaca um quadro inicial, quando uma enfermeira diz a Rosine: “com essa criança, é o inferno”. E um estado final que destaca, também o testemunho de uma enfermeira, que diz à Rosine: “essa criança é adorável”.
Fica claro que essa criança, que estava condenada a uma estrutura asilar nos anos de 1950, encontra-se, naquele momento final, em condições de ser colocada em uma instituição educativa, assim como em uma família. Seu destino havia sido mudado por esse tratamento. Miller entende que, nesse caso, é necessário produzir uma certa pacificação, uma domesticação de sua excitação, que se pode traduzir, em nossos termos, como um certo domínio de uma libido ou de um gozo desarticulado que é produto de um uso do significante “O lobo!”.
Uma palavra reduzida ao seu caroço, em seu estado nodal. Um gozo petrificado em S1, “o lobo!”, que encarna sua destruição. A partir de seu destacamento, Robert poderá encontrar o seu lugar e se construir. Esse é, portanto, um caso que nos permite fazer o percurso do Um do gozo ao Outro do significante.
A transformação apontada por Miller, nesse tratamento, se deduz, sobretudo, da introdução, no mundo do paciente, de um elemento novo, a analista, seja com seu corpo, seja com sua presença regular para Robert. Miller fala da necessidade do corpo do analista em sua função de interpretação. Rosine, no lugar de analista, coloca seu corpo em jogo; a interpretação analítica é, sobretudo nesse caso, um entrelaçamento entre a linguagem e o corpo. “Tudo depende do acontecimento, um acontecimento de corpo que deve ser encarnado, que tem a aparência do trauma. O ‘núcleo’ da análise é, portanto, o ‘instante da encarnação’.”[6]
Isso já indica, pelo menos, que a interpretação, como perturbação da defesa, mobiliza algo do corpo. É um modo de interpretação que exige que o analista coloque em jogo seu corpo e seu estilo.[7] O analista, ressalta Miller, terá que oferecer seu corpo, para merecer ser, ou ser tomado como, um pedaço do real.
Será justamente a partir do corpo de Rosine que Robert poderá construir uma vacuidade, uma diferenciação e um exorcismo do “O lobo!”
Rosine, na época uma jovem analista decidida e dedicada a seu ofício, que consistia, no caso de Robert, em ser dócil às fantasias de pantomima da criança, dócil à estrutura, mas, por outro, não permitir tudo a Robert, como ir adiante em sua autodestruição. Ela consegue colocar limites e uma barra, primeiro em si mesma e depois em Robert. O que viabiliza que ele possa fazê-lo paulatinamente à sua própria maneira.
O caso Robert
Robert teve um início de vida bem difícil. Ele chegou à instituição e começou o tratamento com Rosine Lefort com 3 anos e 9 meses. Nesse tempo, ele já havia passado por diversas mudanças de casa, de internações em hospitais gerais e em instituições de acolhimento.
Sua mãe, diagnosticada como paranoica, tinha sérias dificuldades em cuidar dele. Dentre as doenças orgânicas, ele teve uma otite bilateral que precisou de uma mastoidectomia dupla, intervenção na qual colocaram uma mamadeira com água açucarada em sua boca para que não gritasse. Quanto ao seu estado motor, Rosine relata que havia uma falta de coordenação dos movimentos, hiperagitação e marcha pendular. Do ponto de vista da linguagem, havia uma ausência total de palavras coordenadas, frequentemente gritos, risos guturais e discordantes. Robert usava apenas duas palavras: “Madame” e “o lobo!” Sua posição frente aos adultos era de agitação e junto às crianças, de indiferença. Ele apenas reagia às crianças, quando elas gritavam e choravam, momento em que tinha crises do tipo convulsiva e se tornava agressivo.
Rosine divide o tratamento em fases:
1) Na primeira fase, Robert interage muito pouco com Rosine, não podia chegar perto dela nem da mamadeira de leite. Era agitado, gritava, pulava e abria e fechava a porta ininterruptamente, tomado por alguma coisa completamente desregulada.
Nessa fase, Rosine sustenta o tratamento com sua presença, o que lhe possibilita passar da indiferença e ser aceita por Robert, permitindo que suas interpretações alcancem efeitos que vão além do uso da palavra. Desse tempo, Rosine destaca uma cena e um ato de Robert que marcam a entrada em um segundo momento do tratamento:
Durante uma sessão, após ter empilhado tudo sobre mim num estado de grande agitação, safou-se, e eu o ouvi, em cima da escada que não sabia descer sozinho, dizer, num tom patético, numa tonalidade muito baixa que não lhe era habitual, Mamãe, face ao vazio.
Essa fase preliminar terminou, fora do setting do tratamento. Uma noite, após a hora de deitar, em pé na cama, com tesouras de plástico, tentou cortar o seu pênis diante das outras crianças terrificadas.[8]
Miller destaca que aqui temos o fim da fase preliminar desse tratamento, com uma primeira tentativa de barrar no real do corpo o excesso de gozo que o invadia. Uma tentativa determinada de inscrever esse “a menos” onde quer que fosse. Nesse momento, através do “simulacro da mutilação efetuada pelo sujeito em seu corpo, precisamente em seu pênis.”[9] Será a partir dessa tentativa de mutilação que ele poderá destacar um objeto entre outros, no caso, a mamadeira. A cena seguinte envolve o destacamento da mamadeira. Robert destaca dos objetos a mamadeira, da qual antes não conseguia chegar perto. Em torno dela, coloca outros objetos, obtendo assim seu destacamento e uma borda: a mamadeira, um vazio e os outros objetos.
2) Segunda fase: Robert começa a expor o que era para ele “O lobo!”
Rosine continua: “Foi um dia agitado em que Robert tentou estrangular uma menininha e, por isso, teve que ser separado das crianças em seu quarto. Eu fui levá-lo até lá, ao chegar ele gritava angustiado: o lobo! o lobo!”.[10]
Rosine relata que ali entendeu que “O lobo!”, seu S1, representava sua destruição, sendo evocado sempre em momentos de grande tensão relacionados às experiências de mudanças que acabavam, por muitas vezes, por envolver a ingestão e a excreção.
Certo dia, numa sessão, quando Robert acabara de tomar uma mamadeira, surpreendentemente, estendeu os braços para fora da sala, entregando a mamadeira a alguém imaginário. Deu-me as costas, jogou a cabeça para trás, inundou-se de leite e jogou o resto sobre mim. Tomado de pânico foi embora inconsciente e cego. Eu precisei ir buscá-lo no alto da escada de onde começou a rolar.[11]
Rosine ressalta que, nesse momento, teve a impressão de que Robert tinha engolido a destruição, e que a porta aberta e o leite estavam interligados. Alguns dias depois dessa sessão, Robert correu para a janela, viu sua imagem no vidro e bateu fortemente, gritando: O lobo! O lobo! Robert se representava assim, ele era “o lobo”.
3) Na fase seguinte, Rosine identifica que graças à sua permanência para Robert, ele pôde exorcizar “o lobo” e as cenas da vida que lhe faziam tão mal. Em algumas sessões, Robert faz com que Rosine encarne a mãe esfomeada que lhe privava de comida, assim como aquela que foi embora, ou seja, a sua destruição.
Rosine conta que Robert se separa do “lobo” ao longo de uma sessão, fechando-a no banheiro e retornando ao consultório sozinho, quando começa a gemer. Ele não podia chamá-la, mas ela tinha que voltar. Ao chegar, encontra-o estendido, com o polegar perto da boca e, pela primeira vez, numa sessão, estende os braços e se faz consolar por ela. Robert desfere muitas agressões tanto a Rosine como a si mesmo. Muitas vezes, Rosine se vê obrigada a impedi-lo de tamanha violência, como quebrar a mamadeira quando era representado por ela.
Rosine entende que, nessa época, suas interpretações foram no sentido de lhe dizer que o passado o obrigava a ser agressivo com ela, mas que isso não a faria desaparecer. Essa encarnação do lobo por Rosine permite a Robert uma certa separação desse significante “O lobo!”, signo de sua destruição e de um gozo desregulado. A partir desse momento, ele não fala mais do lobo.
4) Pode passar para a fase de construção de seu corpo.
Um dia, colocou o balde cheio d’água entre as pernas, segurou a corda e levou a extremidade dela ao umbigo. (…) Em seguida, virou o conteúdo do balde de água, despiu-se, depois deitou nessa água, em posição fetal, encolhido, estirando-se de tempos em tempos, e indo até abrir a boca e fechá-la sobre o líquido(…). Roberto (…) pegou a água com as mãos juntas, levou-a à altura dos ombros e fê-la escorrer ao longo do seu corpo. Recomeçou assim várias vezes; e depois disse-me docemente: -Roberto, Roberto.
(…)
Em seguida, pegou seu copo de leite e bebeu (…) começou a derramar leite da mamadeira ao longo de seu corpo. (…) recomeçou a fazer escorrer o leite sobre o peito, o ventre, a ao longo do pênis. (…) Depois, voltou-se para mim e me mostrou esse pênis, tomando-o na mão, com ar de contentamento. Em seguida, bebeu leite, colocando-o assim em cima e dentro, de maneira que o conteúdo fosse a um só tempo conteúdo e continente.[12]
O caso ainda apresenta desdobramentos, mas paramos aqui. Tomaremos como conclusão o que Miller, chama de “A ereção de (1) e a declinação de (-1)”[13], indicando que a tentativa de Robert de cortar seu pênis com a tesoura de plástico, é uma tentativa de inscrição do “menos” no real do corpo. A partir daí, as coisas mudam. Robert começa a cavar o vazio, fazendo uma roda com objetos em torno da mamadeira, uma separação entre a mamadeira e os objetos. No final do tratamento, Robert consegue rodear a analista com objetos e, consequentemente, destacar os objetos, fazendo um vazio também em torno dela. Miller observa que, nesse caso, temos a forma mais manifesta da ereção de (1). Destacar um S1, um objeto único em relação ao qual todos os outros estão excluídos, como a mamadeira e, no final, a analista.
Seguindo as orientações de Miller, poderíamos dizer que há o destacamento de um S1. Uma letra em que o gozo pode se localizar a partir da ereção do (1) e a tentativa de inscrição de um (-1), ou seja, de um vazio. Assistimos a uma introdução de uma descontinuidade, uma vacuidade, nessa massa informe, uma tentativa de esvaziamento e localização do gozo desregulado, em que a analista se oferece como ferramenta. Esse “fazer o vazio” se torna uma atitude verdadeiramente fundamental em sua prática. Miller entende que não há excesso em ver de forma correlativa à ereção desse (1), reproduzido como a exigência e o apelo em fazer entrar o (-) no real do corpo, na tentativa de mutilação.
Miller localiza nesse ato o começo do tratamento de Robert, a entrada em função desse menos que tenta se inscrever no real. Esse dispositivo do tratamento caminha com tanta dificuldade que, após essa primeira tentativa de mutilação, vamos ver esse menos se declinar no real em outras tantas situações. Uma busca de inscrição no real, um esforço do pequeno Robert em dar um correlato à função do “menos”. Ele permanece em um processo de negativização em que, correlativamente, o sujeito é capaz de inscrevê-lo na dimensão do “ter”. Robert consegue, à sua própria maneira, construir um lugar para si, um corpo, um nome. “É somente se essa operação tiver ocorrido, se o S1 e o vazio tiverem sido inscritos, que o sujeito poderá acreditar que existe um corpo e fazer uso dele, assim como também será capaz de investi-lo”. Lacan atribui à encarnação desse Um e seu vazio o efeito de tornar o corpo possível, como um saco vazio, assim como o de suportar uma representação de si, um nome: Robert.
Comentários sobre o caso do Menino Lobo
Angélica Bastos: Para retomar o trabalho de Rachel Amin, começo pelo encontro que ela propõe entre o curso Um sozinho de Miller e o caso do menino lobo. Esse encontro me parece sobretudo necessário. Ele é desafiador porque nos faz revisitar o caso Robert que Lacan traz em seu primeiro seminário.
No meu entender, retomar, à luz do Um e da existência — e não a partir da fala e da falta-a-ser — os casos trabalhados é um exercício, não apenas teórico, para entendermos as ideias e conceitos do ensino mais tardio de J. Lacan, mas um exercício com um efeito de retorno sobre nossa prática, com o que o caso ensina.
O curso de Miller que nos orienta este ano foi proferido em 2011. Chamava-se O ser e o Um e atualmente é chamado de O Um sozinho. A tradução literal de L’Un tout seul seria O Um todo só, que não é idiomático em português. Então ficou: O Um sozinho.
Esse curso de Miller nos convida e nos orienta a abordar o gozo na perspectiva do Um, por mais que o Um pareça uma abstração para o hábito de tomar a linguagem como estrutura e o grande Outro como lugar do significante. Tomar a linguagem como estrutura nos instala no ser, ou melhor, nos seres de linguagem, condicionados por ela. Como assinala Miller, a linguagem estabelece seres inexistentes, e mais, os faz inexistir.
O inconsciente estruturado como uma linguagem e o inconsciente como corte entre o sujeito e o Outro não possuem estatuto ontológico, conforme explicita Lacan no Seminário 11. O inconsciente não é um ser. Lacan acabará por usar a expressão “fazer ex-sistir o inconsciente”, existir fora, a partir e para além dos ditos que se articulam na linguagem.
Em 1953-1954, quando se discutiu o tratamento conduzido por Rosine Lefort — mas não só ali, de fato, por um longo tempo — o campo da linguagem e a função da fala eram as coordenadas que possuíamos para situar a experiência psicanalítica. Campo do Outro é uma expressão que remete à linguagem e à fala. Agora buscamos nos orientar pelo Um, pela existência, pela escrita, pela letra, porém, não sem a linguagem articulada, da qual não temos como sair, apenas como manejar. Devo dizer que, quanto ao caso, vou me limitar ao Um e à existência, no máximo à escrita. A letra fica para depois. Para extrairmos do Um sozinho e da existência sua potência para tratar o gozo não devemos opor duas abordagens, fazer uma antinomia, mas discerni-las, buscar o que subsiste do Um quando o Outro já foi construído, porque o Um não evolui para o grande Outro nem o Outro exclui o Um. O Um persiste, subjaz ao que se organiza como campo do Outro, ou, para empregar maneiras de se conceber o inconsciente e a linguagem distantes das referências clássicas, o Um subsiste no saber fazer com a língua e na elucubração de saber sobre que é a linguagem.
A aula 8 do curso de Miller[14] foi escolhida e bem escolhida para o trabalho de hoje, que parte do desnivelamento entre ser e existência; por isso, falei em planos e ferramentas diversas das clássicas. Ser e existência não se encontram no mesmo plano. O ser como ser de fala implica o sujeito como falta-a-ser, porque é próprio ao ser de fala o caráter evanescente, é próprio que se furte, que escape. Conforme lemos nessa lição do curso, o ser discursivo está subordinado à função do tempo, não é eterno.
Já a existência é outra coisa, de outra ordem. Miller recorre ao algoritmo de Saussure para localizar o ser no nível do significado (que corresponde à linguagem articulada), enquanto a existência estaria no plano do significante, do Um. Assim entendemos que o ser não apenas tenha significações mas que ele próprio seja uma significação.
Essa aula 8 acentua pontos muito importantes. Miller afirma: “a existência não nos faz sair da linguagem”. O acesso à existência não é uma viagem para fora da linguagem, e sim a linguagem tomada no plano da escrita, não mais no plano da fala ou do ser. O nível da escrita não se confunde com a transcrição da fala, com sua estenografia ou sua gravação. Na escrita que interessa ao nível da existência, trata-se de pura escrita, o uso da letra separado de qualquer significação, deixando vestígios que não são necessariamente letras de um alfabeto, que podem ser números, como no manejo da escrita matemática. A existência é sem mundo, porque não há mundo ou realidade pré-discursiva, outro ponto para a discussão.
Conforme Rachel destacou, Robert usava poucas palavras e não formava frases. “Madame” e “lobo” eram duas dessas palavras que não parecem estar em oposição diacrítica como no fort x da, como aqui x embora, ou como o dia x a noite. Madame e lobo parecem ser Uns sem Outro. Depois, após várias sessões, o menino passa a dizer Robert, Robert, significante que o designa no Outro, mas que não se conjuga a um sujeito da enunciação ou do enunciado.
Não é nada surpreendente que a investigação clínica orientada pelo Um interesse à clínica com crianças e que tenha sido impulsionada pela clínica com crianças autistas e psicóticas. Isso não deve, no entanto, nos conduzir a uma concepção desenvolvimentista do Um ao Outro. Simplesmente não pertencem ao mesmo nível.
O lobo!, o S1 de Robert, representava, ou melhor, realizava sua destruição. Era um significante que não o representava para outro significante ou para todos os outros significantes, mas que era usado quando se tratava de ingerir ou excretar. Quando o gozo não está aparelhado pela língua, a alimentação é uma invasão brutal. Quando não libidinizada, a excreção, por sua vez, é aniquiladora, mortífera.
Rosine Lefort é uma jovem em análise, está engajada na experiência do inconsciente. Ela é sensível ao Um, de um modo que talvez possa chamar de pré-conceitual, preliminar ao conceito do Um, na acepção psicanalítica — não digo filosófica, já que remonta aos gregos da antiguidade. O caso foi apresentado em 1953-1954 e o Seminário 19 de Lacan é de 1971-1972. A analista não parte, no entanto, para uma narrativa sobre o lobo. O lobo não vira lobo mau nem bom, não ganha significação, tampouco opera pelo par de opostos: aqui x lá, dia x noite. Esse Um sem par requer o vazio, que não tem lugar na lógica das classes, vazio que — aprendemos — como conjunto vazio, sem elementos, está contido em qualquer conjunto, é parte de qualquer conjunto, um subconjunto.
A diferença no plano da linguagem implica que um significante seja diferente de todos os outros que não ele. No plano da existência, o Um que há é diferente da inexistência. Daí a necessidade do nada, do vazio? Ponto para a discussão.
No caso de Robert, o vazio não está em ação, é preciso constituí-lo no tratamento. Digo que Rosine Lefort foi sensível porque ela não toma o lobo como um S1, como um significante unário, nem como S1 à espera de um S2 do saber, ou não toma apenas nesse plano. No plano da existência, não se trata da oposição, mas da diferença entre o Um que há e o vazio. Não é porque o Um está apartado da semântica do Outro que o analista deve alçar a produção da criança à semântica e lhe dar significação.
Lacan diz, na época, que, em Robert, a palavra se encontra reduzida a seu caroço. Algo reduzido ao caroço, ao osso, é algo sem entorno, é algo despojado de suas vestimentas, de um envoltório, de articulações. Poderíamos hoje dizer um significante reduzido ao real.
No início do texto, Rachel coloca o argumento de que a inscrição de um S1 é condição para que o sujeito tenha a crença no corpo, para que faça uso dele e para que o invista. O banho da linguagem por si só não é suficiente para que a operação de inscrição se realize. Em Robert, assistimos às consequências do traumatismo inaugural, troumatisme, trauma que faz furo, que atinge quem faz o encontro com os significantes. A partir desse furo e em torno dele, a inscrição do S1 corresponde à operação de identificação e à constituição do corpo.
Fala-se em foraclusão do furo, quando não se realiza a operação a partir do furo, em torno dele. No caso Robert, o trauma que fura é duplicado em sua história pela cirurgia na qual a invasão é levada ao extremo: uma mamadeira é colocada na boca da criança enquanto ela sofre uma operação cirúrgica no ouvido, o único orifício que não se fecha. Essa efração que ele sofre na carne não pode ser assumida por um sujeito, não é narrada, não pode ser retomada por ele no nível da fala, mas se apresenta como Um de gozo que insiste, reitera. Rosine vai falar com ele, falar coisas importantes, com muito sentido, mas o que importa é muito mais o “com ele”, o “a ele”, do que o “sobre ele” ou “dele”. No nível do gozo, isso fala dele, fala lobo, aquém do endereçamento.
A transferência é um aspecto fundamental, como sempre. Esse caso mostra que a transferência pode estar em curso, ou para sermos mais prudentes, algo da ordem da transferência, que prefigura a transferência, pode entrar em jogo, quando o Outro não está constituído — seria outro ponto para a discussão. Isso é difícil de articular: quando o Outro ainda não se diferenciou, quando real, imaginário e simbólico não estão diferenciados e enlaçados. O que vai determinar a transferência é a presença de Rosine Lefort com seu corpo, um tipo de presença que Miller denomina “regularidade da presença operatória durante todo o tratamento”.[15] Miller destaca o vazio que a criança vai estabelecer em torno da mamadeira e depois em torno de Rosine Leforf. Tendo a ver isso como uma oferta de presença. Uma oferta que não preencha vazio é um desafio na clínica com essas crianças, quando é preciso colocar uma presença ausente, despojada do olhar e quase despojada de voz e de palavras. Conforme mostra o relato do caso, o vazio está por ser estabelecido do lado da criança que vai proceder a um esvaziamento, parcial, relativo, do gozo do Um que se manifesta como agitação, agressividade, autodestruição, turbilhão, conforme trouxe Rachel.
Interpretação e transferência foram os temas de nossa preparatória para as XXXI Jornadas da EBP-Rio e ICP-RJ:.A Palavra e a Pedra – Interpretação em Análise. Esse caso mostra bem como a analista não aguarda um endereçamento da criança para interpretar, não aguarda, por exemplo, o momento em que ele estende os braços ou diz “mamãe”. Não aguarda para dizer ou fazer algo. A analista está ali, fica ao lado dele, disponível em seu silêncio. Rosine Lefort leva o menino para o quarto, quando a sessão fica inviável. Essa suspensão, interrupção, é essencial para que a sessão não seja um imperativo, que impõe a presença do corpo da analista e exige o trabalho da criança. Isso parece surtir efeitos e o efeito é um elemento crucial quando falamos de interpretação. Só podemos dizer que as palavras ou o silêncio funcionam como interpretação quando há efeitos, que não são de concordância ou discordância, conforme já advertia Freud. O analista dá sua cota, “paga com palavras se a transmutação que elas sofrem pela operação analítica as eleva a seu efeito de interpretação”, conforme Lacan formula[16].
Lacan esclarece que uma interpretação deve fazer ondas, não deve ser teórica[17]. Fazer ondas implica relançar o encadeamento, abrir novas cadeias, o que não pode ser o caso de Robert, simplesmente porque não encadeia. A julgar pela transformação que se opera na criança, as ondas repercutiram no gozo disruptivo, desarticulado e transbordante. Certamente ele retoma o trabalho com os objetos que não se distinguiam de seu corpo, fazendo diferentes coisas com a mamadeira que precisa ser quebrada, ter seus cacos cobertos, em outra sessão precisa ser esvaziada.
Quando partimos do Outro, quando estamos no nível da linguagem e do ser, o S1 está à procura de um S2. Quando partimos do Um e da existência, estamos na dimensão da iteração do Um que “comemora” uma irrupção de gozo, a efração de um gozo que transtorna o parlêtre (“pela-letra”, que aqui não se traduz como falasser) e que vem a constituir o que há de mais elementar em qualquer sintoma.
Considerações Finais
Ruth Helena Pinto Cohen: Para concluir, gostaria de fazer algumas considerações sobre as contribuições elaboradas por nossas colegas.
Do caso apresentado por Rachel, podemos vislumbrar os efeitos da inexistência de um Outro fazendo aparecer Uns, como nos assinala Angélica, sedimentando o excesso de gozo que invadia essa criança, e acompanhar a transmutação operada pelo discurso analítico sobre sua existência,[18] cuja escrita que não era a da fala, mas tinha uma função de incógnita, que se escrevia na mostração de um corpo infans dilacerado, ameaçado de destruição por um gozo repetitivo, pelo viés de um S1 sem S2.
O caso nos ensina sobre a marca primordial, que Miller escreve com o algarismo romano, (I). Esse Um original do significante foi posto a trabalho nessa análise. Seguindo Miller em seu curso, na aula de 16 de março de 2011, podemos extrair consequências do que o caso nos aponta sobre a conjunção da existência e dessa escrita primeira, cujos efeitos não são de significação, mas que exigiram de Rosine Lefort uma docilidade e uma regularidade da sua presença, que criou a possibilidade de fazer série, ou seja, com o corpo a analista indicou um específico manejo da interpretação e da transferência.
Robert foi criando um espaço topológico vazio, como Rachel pontua no caso e, assim, pode isolar seus objetos, os de dentro e os de fora, construindo um corpo e um sujeito, “mesmo débil”, como assinala Miller em seu comentário do caso.[19]
No percurso do tratamento, verificamos que ele foi do grito “O lobo!”, repetição do Um, que “comemorava uma irrupção de gozo inesquecível”,[20] ou seja, das marcas deixadas pelas invasões vividas no corpo, até chegar à criação de um nome: Robert. A cicatrização dessas primeiras feridas se fez pouco a pouco, pela possibilidade da inscrição de um espaço vazio,[21]que, na vertente do zero, pode ser contado como Um, não mais do S1 da destruição, mas da escrita de uma série, possibilitada, como foi apontado pelas colegas, pelo encontro diário com o corpo da analista. Dessa forma, foram oferecidas: constância de presença, acolhimento e possibilidade de construção de um vazio, que não foi tamponado com significações. [22]