Ferramentas do último ensino
Doris Diogo: Treze cartéis foram formados para pensar o tema do XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, cartéis compostos por membros e participantes ativos de nossa Seção e que convidaram, para ser mais-um, necessariamente alguém de outra Seção da EBP. Este pequeno grupo, o cartel, assim constituído, enlaça o Uno e o múltiplo da Escola. Nessa perspectiva, reafirma-se a política da Associação Mundial de Psicanálise e da Escola Brasileira de Psicanálise de que todo cartel, desde o Ato de fundação, para Lacan, é endereçado à Escola.
O trabalho vem acontecendo nesses 13 cartéis, e 11 deles enviaram questões e pontuações para esta preparatória. Essas pontuações foram enviadas para Marcus André Vieira, que regerá a orquestra, tendo como solistas Paula Borsoi e Ana Tereza Groisman. Esta é a forma de falar um pouco desse movimento que resultou no encontro de hoje. Bem-vindos todos ao trabalho!
Ana Tereza Groisman: Boa noite. Agradeço à Diretoria da Seção pelo convite para fazer parte desta mesa. A EBP-Rio abre as portas e toma seu lugar na série de Preparatórias que estão acontecendo para o XXV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, “Os corpos aprisionados pelo discurso… e seus restos”, que nos reunirá em São Paulo em novembro.
As preparatórias vão nos preparando, aquecendo os tamborins para nos aproximar do tema do Encontro, que não é fácil. Esta preparatória talvez já tenha começado bem antes, como Doris falou, em dezembro do ano passado, quando os cartéis começaram a se reunir. As questões enviadas serviram bastante para Marcus André escrever seu texto. Ele não foi convidado para responder às questões dos cartéis propriamente – até por se tratar de um trabalho em andamento –, mas para que ele puxasse um fio que interessasse, que o fisgasse na leitura do último ensino de Lacan. Contamos hoje também com a participação dos cartelizantes que escreveram e enviaram questões. Primeiro Marcus apresentará seu texto, depois Paula Borsoi e eu vamos intervir com um ponto ou outro para animar o debate.
Marcus André Vieira[2]: Agradeço por esse grande trabalho prévio que fizemos. Vocês verão que farei referências a esses cartéis, mas não vou citar nomes para as pessoas terem que falar suas questões. Isso teve realmente um efeito; trabalhamos, eu, Ana Tereza e Paula, e a ideia é fazer essas coisas difíceis virem à terra.
Vou fazer uma pequena introdução, supondo que nem todos já estejam por dentro do tema do Encontro. Sobre o título, que Ana Tereza lembrou, colocam-se em cena os corpos, as falas, os modos de falas, os discursos que atravessam esses corpos e um resto. Um resto do nosso ser vivente que nunca é totalmente colonizado pelos discursos. Essa articulação é mais ou menos conhecida por nós, lacanianos, ao mesmo tempo que são temas “pé no chão”: corpos, discurso, resto… Mas a escolha do Seminário 19 e esse momento do ensino de Lacan levam nosso Encontro para o coração do que chamamos de “último ensino”, que é um recorte dos últimos Seminários, feito por Jacques-Alain Miller dentro da continuidade dos 30 anos de Seminários. E, nesses últimos Seminários, Lacan introduz uma série de conceitos, ferramentas, mas nenhum deles parece muito pé no chão: nó, litoral, sinthome, ex-sistência, paiversão, lalíngua, falasser… entre outros tantos neologismos dessa época que pedem, ainda, para serem mais explorados em seu uso de ferramenta. Esta é nossa ambição e a ambição deste Encontro. É exatamente neste ponto das ferramentas do último ensino na clínica que insistem os cartéis. Isso ficou muito claro nas questões que nos mandaram.
E, especialmente, com o Seminário 19: …ou pior, um desses temas chama a atenção. É o tema do Um. Aquilo que, na nossa experiência, poderia ou não sustentar uma unidade. Parece um pouco anacrônico, porque estamos, hoje, banhados numa ampla idealização do múltiplo. Múltiplas tribos, múltiplas sexualidades etc. Tudo que é plural e diverso parece que é melhor, superior ao que é Um, unitário, geral. Mas a multiplicidade tão idealizada em nossos dias, no plano coletivo, se tirarmos qualquer referência ao Um, se torna apenas um enxame. Ou guerra de tribos. É preciso algum tipo de coesão e coerência, um mínimo de unidade. Então, mais que nunca, o Seminário e o último ensino de Lacan são atuais.
Um plano aquém da castração e do recalque
A questão é: de que se trata quando Lacan fala do Um neste Seminário? Pensei que valia a pena começar dizendo o que não é esse Um. Não é o Um da exceção, o Um patriarcal. Esse Um patriarcal é um vazio, é justamente o pai que não está, o pai morto. A exceção, seja o pai ou seja o papa, seja o rei, não faz parte do conjunto dos que estão reunidos em nome dela; elaé um ponto cego, um furo. Foi o que Freud dramatizou com “Totem e tabu”. Quando o coletivo se estabelece deste modo é porque o pai já morreu. Qualquer líder que está aí governa “em nome de”, não por ele mesmo. Acho que podemos assimilar essa estrutura à estrutura do discurso do mestre, presente nas diversas formas de apresentação dos laços ditos patriarcais — só é preciso não confundir patriarcado com autoritarismo, ditadura, chefe de seita, a obscenidade desse nível. Sabemos que esse mestre está muito combalido. Falamos em “se evaporou”, “está se evaporando”, “o ocaso do Nome do Pai”. Todos sabemos que o mestre contemporâneo não é mais esse. O nosso mestre é o capital, o mercado. E se olhamos para o mercado, sabemos que ele não se organiza em torno de nenhuma exceção. Ninguém governa o mercado, nem a Faria Lima. Mas quem manda? Ninguém.
O Um na análise também não é o Um paranoico que cresce exponencialmente em nossos tempos, justamente quando se evapora o Um do mestre. É quase impossível viver sem alguma unidade, então vem o Um paranoico nesse lugar. É o Um do inimigo designado, corporificado, contra o qual todos devemos lutar — e soubemos bem o que é isso nos últimos tempos. Ainda dava para falar do Um paranoico como o Um não apenas do ódio, mas o Um do amor, o amor erotomaníaco, do ídolo, que faz inclusive a gente perder a vida no calor do Engenhão por esse tipo de Um. Miller resume a generalização desse Um imaginário, de um imaginário rígido, que pode inclusive incluir não apenas a paranoia, mas também algumas identificações excessivamente rígidas, com o termo “um-dividualismo” contemporâneo, exatamente na contracapa do Seminário 19.
E o Um analítico? Qual o Um de uma análise? A primeira resposta é a consciência, o ego. Ele é o que é unitário. O inconsciente nunca foi Um. Por mais que a gente pense que ele é uma outra cena, como se tivesse uma segunda, o inconsciente é muito mais um feixe múltiplo de ideias, memórias, pulsões, não dá para dizer que ele é Um. Uma dessas pode ganhar e fazer uma reviravolta na consciência e aí temos um novo Um, mas o Um continua na consciência. Também não dá para dizer que o inconsciente é o Um da análise. Este Um só se apresenta em um plano paradoxal. Complicado. Nem no mundo, nem fora do mundo, é exatamente o que Lacan busca em seu último ensino.
São muitas as maneiras de denominar esse plano. Eu escolhi uma que Miller diz no curso O ser e o um. É um plano “aquém” do recalque, anterior à instauração dessa tensão dialética entre consciente e inconsciente, ou entre o Eu e as múltiplas pulsões inconscientes, ou os desejos inconscientes. Aquém desse Um do mestre, do Um edípico, da exceção, que é também o da castração.É um plano aquém da castração, ou aquém do recalque, de uma positividade que resiste a qualquer tipo de negativação. Esse plano será acessado nesse Seminário de Lacan justamente longe de qualquer negatividade, como a de um gozo opaco a partir do Um. Então, vamos falar do Um do gozo, de um campo uniano. E a expressão original específica que ele usou para designar esse Um é “Há-um” — uma outra tradução impossível. Isso é uma frase em francês. Aqui também, “há um”. A gente tentou nos Outros escritos sistematicamente escrever essa frase com tudo minúsculo e agarrado (háum) para desvalorizar um pouco esse um, mas não pegou. Somos adoradores do grande Um. Sempre que a gente fala em “Há-um”, falamos “há UM” na maiúscula. Não é assim. A tradução da expressão em francês seria muito mais “há um tanto de um, há um bocado de um, existe algo de um”. Inclusive Paulo Vidal sempre fala “a gente devia ter traduzido por ‘algodum’”, mas é muito feio em português. Teria dado certo. Infelizmente ficou o “Há” grande “Um”.
É um “podendo ser um”, mas que não necessariamente é. Algo que existe, mas que não é necessariamente uma coisa que se pega com as mãos. Vou listar, antes de entrar na complicação, um apanhado de questões para vocês verem como a comunidade está se debatendo com essa relação entre o plano do recalque e do aquém do recalque.
Ana Tereza: Paulo Vidal colocou no chat que ele traduziria por “hadum”.
Marcus André: Ele está certo, a experiência mostrou que ele tinha razão. Mas eu era muito submetido ao português. “Hadum” não existe em português, enquanto que “Il y a de l’Un (yad’lun)”[3] existe em francês.
Vou listar um apanhado que fizemos a partir das questões recebidas: como articular a dimensão do corpo aprisionado pelo discurso com a lógica estabelecida pelo “Há-um”? De que corpo e de que discurso estamos falando? Como lidar com o registro opaco do corpo? Acrescento: podemos falar em um corpo “aquém” do imaginário? Ou de um discurso “aquém” dos quatro discursos? Seria esse um plano mais geral da linguagem — que estaria “aquém” do plano dos discursos? Seria esse o plano de lalíngua? E como ter acesso ao Outro dos discursos partindo desse “Há-um”? O discurso como lugar do Outro incide em lalíngua ou é só lalíngua que incide nos discursos?
No plano mais clínico, diretamente operativo: como se introduz a dimensão do “Um” na clínica? Será pela presença do analista, o analista que materializa esse Um? Será pela interpretação? Qual o lugar do inconsciente no campo uniano? Vamos chamar de inconsciente real? Mas o que é o inconsciente real? Como se apresenta na clínica? Estaria, então, talvez, o inconsciente no lugar da contingência? As questões também têm hipóteses, propostas, ótimas, para trabalharmos. Em cada ressonância de cada significante da interpretação, já não há esse Um, um elemento do Um original? Seria isso a iteração? No trabalho de escuta da clínica, como distinguir o que é repetição do que é iteração? E como nisso aprender o que é um acontecimento de corpo? Se, no campo do gozo, o Um domina, como se situa a transferência? Como se faz a parceria com o analista na atualidade do individualismo?
Vocês veem que são as questões mais básicas e mais difíceis. Entendo que a nossa comunidade vai responder, ou está respondendo. Não é só neste encontro, estamos todos a trabalho nas sete Escolas. As coisas virão.
Incluir um gozo que não se contabiliza
Gostaria de enfatizar a relação muito forte, neste Seminário, do Um com o conjunto vazio. A discussão do Um, conjunto vazio e a escrita. Para isso, um pequeno desvio pela diferença, explorada por Lacan no Seminário 19 com a teoria dos conjuntos, entre parte e elemento. Sofri para conseguir, primeiro, entender e, depois, tentar fazer isso se transmitir de maneira mais fácil.
Estamos habituados a pensar que um conjunto só tem elementos, mas não. Tomamos, por exemplo, o conjunto dos presentes nesta sala: esse público é o agrupamento formado pelas pessoas presentes contadas uma a uma. Mas, basta estar lidando com coisas menos unitárias – como, por exemplo, tudo que há nas bolsas dos presentes desse público – que vemos o quão difícil é dizer que tudo é elemento. Se o público é constituído pelas pessoas, há também tudo que está presente nas bolsas deste público. Eles são elementos do conjunto? Se eu abrir as bolsas e colocar tudo na mesa, eles se tornam elementos. Mas, talvez não. Dá muito trabalho, e nem tudo dá para colocar na mesa. Isso que não conseguimos contabilizar, nós vamos chamar de parte. Esse conjunto tem um número finito de elementos e um número impreciso de partes. A diferença entre parte e elemento vai ser a chave.
Isso fica mais claro se pensarmos, por exemplo, nos elementos de um sonho. Há tanta coisa imprecisa ali… Ou mutante demais para que se possa contabilizar, contar aos amigos ou à família. Lembrei do exemplo de alguém falando na análise do cheiro da urina da mãe no banheiro. Posso até tomar o banheiro, a privada… mas o cheiro da urina da mãe, olha como é difícil fazer disso elemento. E quando faço, perco algo. Então, falamos de uma parte da experiência que não é um elemento dela. Diremos que há sempre um tanto de experiência que não está no campo do contabilizável — as partes. O contabilizável são os elementos. Tem algo da experiência que está no campo do contínuo, do não enumerável, e não do descontínuo e da contagem.
Um termo bom para isso é o sexual em Freud: o que ele é? Um tanto dele pode ser contabilizado pelas experiências sexuais que podemos contar, os analisantes podem contar. Mas, outro tanto é uma parte de outras experiências, quando, por exemplo, chupamos um sorvete ou brincamos com a lama no jardim. Não é sexo, não é contabilizado como sexual, mas o sexual é uma parte dessa experiência. Sem essa parte, a experiência é só brincar com a lama no jardim. O que Freud fez foi trazer o valor da parte para o conjunto dos elementos de uma narrativa. Por exemplo, uma das partes da experiência de chupar o sorvete é sexual, mas não é sexo porque não se contabiliza como sexo, mas é uma parte. O pansexualismo freudiano se entende melhor com essa diferença entre parte e elemento. O sexual é parte de muitos conjuntos de nossa vida, mas não é elemento de todos. Ele é extra parte, como diz Lacan no Seminário 20 – é outra maneira de falar.
A matemática propõe um modo não standard de operar com esse aspecto e Lacan vai se servir dela no Seminário 19, entendendo que isso tem a ver com a nossa clínica. Isso envolve o tema do Um e do conjunto vazio. Todo conjunto tem um subconjunto que é o conjunto das partes dele. Mesmo que eu não possa contar, posso supor que há um subconjunto de todo conjunto, que é o conjunto das suas partes. O conjunto de tudo que está nas bolsas dos presentes certamente é um subconjunto do conjunto do público. Eu não preciso contar para chamar de subconjunto. Nossos sentimentos são parte desse encontro, mas não são contabilizáveis. Pegamos tudo isso e chamamos de subconjunto do nosso conjunto.
Esse subconjunto, vocês já entenderam que ele é cheio, é vivo e não se tem como contabilizar. Esse é o conjunto vazio; ele é cheio. Imaginem isso no mundo. O conjunto do que se pode contar de um encontro amoroso não parece sempre menor do que foi a experiência? A experiência, sabemos, é feita do que se pode contar e de todo o resto. Esse é o subconjunto que não se consegue contar. O que a matemática faz é chamar isso de conjunto vazio e fazer operações com ele. Mas ele não é vazio.
O gozo é outro exemplo. Como contabilizar uma experiência de êxtase, de deslumbramento? A própria experiência sexual, em que se pode contabilizar orgasmos, mas não a totalidade do que se viveu em termos de gozo. Isso toca exatamente o problema, já que o modo mais comum do laço discursivo macho de operar é contabilizar tudo. Quem não contabiliza, quem diz que tem algo a mais que não se contabiliza, ou é louco ou é burro. É aqui que a lógica dos conjuntos vai situar a função do conjunto vazio como subconjunto das partes.
O matemático encontrou esse jeito de incluir um gozo que não se contabiliza: como conjunto vazio. Essas partes que não são possíveis de dizer e de contabilizar estão em excesso com relação ao conjunto de base dos elementos, mas ela não será mais excluída, será encarnada no conjunto vazio. Não será mais loucura feminina, nem modo paranoico, não será mais “Deus” — porque outra maneira dizer isto que não se pode dizer é: “é o afeto”, “é Deus”… Também não será. Não é infinito. E ele não está em outro lugar, só não consigo contabilizar.
Ele é reduzido a uma representação vazia de sentido, o conjunto vazio. A partir daí, tudo aquilo que era parte passa a se contabilizar no conjunto, mas como um ponto. Ponto cego, mas ponto. Deixa de ser infinito, longe. O conjunto vazio, portanto, não é de jeito nenhum “nada”. Ele é, inclusive, por seu caráter, excesso. E ele acaba por servir de base para definir os elementos, porque é possível estabilizá-los quando situamos um excesso não estabilizável. Mas, como somos todos crentes do vazio, passamos a achar que o conjunto vazio representa uma negatividade essencial, anterior a tudo. Justamente não, ele nasce junto com a contagem. Ele faz furo, se quisermos; o furo vem, mas o furo não estava. Quando o gozo vira falta e o desejo vira busca, o excesso vira vazio.
É essa dimensão de um gozo não contabilizável, mas presente, que o último ensino resgata. Há um tanto de coisa ali, há um tanto de Um ali, que pode virar Um, se virar contagem; pode não virar Um, se ficar parte. Lá não tem Um, lá tem partes. Elas podem se tornar elemento, e esse vai e vem para os dois lados é a presença desse gozo na clínica. Ele não é alguma coisa que não se alcança; não é o impossível, jamais alcançável – ele está ali. Se o tomarmos como parte, ele está ali; se o tomarmos como elemento, ele deixou de estar, apesar de continuar ali, mas perde-se algo.
Como somos crentes do vazio, dizemos que tem “o Um”, que há “o” trauma fundamental, “a” origem, “uma” percussão do significante sobre o corpo, “o” choque do significante sobre o corpo, como se tivesse acontecido uma vez uma perda de gozo. Está acontecendo o tempo todo. O vazio só é furo a partir de uma operação. E o conjunto vazio é o lugar dessa operação. Ponto de passagem irreversível, encruzilhada, vazio do ser, da essência, mas cheio de vida e existência. É a pura existência sem corpo que pode nos servir, e muito
Uma escrita que amarra
Uma análise vai na direção de resgatar esse gozo, não para nos transportarmos para essa dimensão, mas para ela vir para nossa vida. Passemos para um exemplo que Ana Tereza, Paula e eu debatemos e Andréa Reis sugeriu.
É o caso de uma mulher. Esse caso inclui duas linhas mestras. Após muitas idas e vindas de sua análise, com toda redução que o progresso analítico fez, quando tantas cenas se reduziram a poucos elementos fundamentais, ela chega a essas, vamos dizer, duas linhas esquemáticas. Vou esquematizar ainda mais. A primeira diz respeito ao pai. Ela é filha bastarda de um político importante, bastante sujo, corrupto, colaboracionista. Ela é uma trabalhadora incansável e foi descobrindo, em análise, que grande parte desse trabalho era para “arrumar” as situações, esclarecer, deixar tudo às claras. Todo esse gozo vai se resumindo à frase seguinte, fantasmática: “limpar o nome do pai”. Esse nome tem que se tornar imaculado, lavar o seu nome, e lavar aqui é importante.
Por outro lado, a linhagem materna é de uma rejeição por abandono, mas não um abandono violento, e sim encarnado por uma fragilidade enorme da mãe, um desfazer-se, quase de liquefazer: a mãe se derretia e desmaiava mesmo. Inclusive tem um trabalho com relação ao fato de que, na hora do parto, a mãe “perdeu as águas”, que é a expressão na língua materna dela para romper a bolsa. Há uma série de sonhos que apresentam o desejo da mãe como uma espécie de contínuo líquido, como um rio incessante.
Então, ela chega na análise em uma espécie de montagem que cruza essas duas linhas e que é a montagem do nó que cria esse ponto de passagem. Um sonho com o sabão em pó OMO diz tudo. O M O diz tudo porque ele é sonoro com água[4], ou é água, e tem um cruzamento desse lado de liquefazer com a limpeza, que lava mais branco. Além do slogan: “OMO, aquele que lava mais branco que o branco”, que localiza o impossível de limpar — o nome do pai —, não só como impossível, mas como também esse fluxo das águas que vai continuar lavando eternamente. Tem algo deste gozo contínuo que vai aparecer no próprio OMO. Ele lava mais branco que o branco desde que se continue lavando sem parar. O slogan “OMO lava mais branco que o branco” situa esses aspectos da sua vida e o sinthoma que seguirá. Seguirá, mas agora reduzido por essa fórmula e, por isso mesmo, muito mais aberto a novas experiências de liquidez da vida – liquidez esta que tem vários sentidos. O OMO então é uma espécie de encruzilhada.
Ele é um resto? O que é o sabão em pó quando a liquidez da vida passa a ser o gozo principal? Um resto meio de passagem, conjunto vazio, saco furado — como diz uma das metáforas de Lacan para esse ponto de virada. Os restos fantasmáticos com os quais ela sempre lidou continuam lá: a mancha negra, a limpeza da mancha, o nome da família, o desmaio da mãe, o desmaio das mulheres, que pareciam ser o real. Agora o real é esse fluxo.
Concluo apenas chamando a atenção para essa analogia entre o OMO e a escrita. OMO é uma escrita? É uma analogia com o papel e lápis o que fazemos quando escrevemos? Reduzimos e transformamos em traços coisas carregadas de sentido na análise, e isso sim poderia fazer uma analogia com a escrita. Mas, na escrita desse OMO, não dá para ficar apenas com a ideia da redução. Tudo foi reduzido a OMO, mas isso é uma produção que amarra. Então, a escrita aqui é a escrita de um nó, e não a escrita de uma impressão, e nem é a leitura da impressão que está feita. É preciso produzir o nó. Tem uma espécie de produção de análise aqui. Essa é a escrita que convém à analogia, a escrita do nó. Trata-se de uma polêmica, e Miller diz isso explicitamente: para Lacan, o nó borromeano é uma nova escrita, uma nova maneira de entender o que é a escrita[5]. Queria deixar isso marcado para também trazermos à nossa discussão a ideia de que esse Um do gozo não vai vir para vida se ficarmos achando que ele está lá e que temos que ir para lá. É preciso um enlace que faça ele circular; um enlace que pegue. Tipo: está amarrado em nome de Lacan!
Paula Borsoi: Queria agradecer à diretoria pelo convite de estar nesta mesa . Fiz duas/três perguntas a partir do que Marcus trouxe. Essas elaborações também são fruto de leituras que eu tenho feito no Cartel para o Encontro Brasileiro[6].
Marcus se pergunta, desde o início, de que “Um” se trata quando estamos falando do “Há-um”, de como isso se localiza na prática clínica. Pensei o seguinte: quando Lacan introduz uma mudança na grafia do sintoma, ao introduzir uma letra, cria uma reviravolta que estabeleceu tudo o que avançou no seu último ensino, e Miller nos ajudou a fazer isso também.
Miller, em O ser e o Um, diz uma frase que acho muito interessante e vou tentar falar sobre isso: “O sinthoma com th pura e simplesmente se repete e não é correlativo de uma revelação e sim de constatação”[7]. Trata-se de uma constatação de quê? Como isso se localiza na nossa prática? Numa análise, o cruzamento contingente e faltoso da linguagem com o corpo é uma experiência que inclui o real. Essa experiência, Marcus assinala, é uma perturbação imposta pelo gozo que impede harmonia e complemento. Dessa disjunção entre gozo do corpo que existe e da relação que não existe nos seres falantes experimentamos uma defasagem. Esse gozo comemorado pela repetição não se deduz e não tem intenção ou evolução. Ele é uma ruptura em relação a uma ordem prévia da rotina que se imprime no corpo animal.
Lacan faz uma passagem do “não existe relação sexual” para o “Há-um” e foi assim que pude entender um pouco esse “Há-um”. Do “não existe” para o a, do negativo para o positivo, de certa maneira. Nessa passagem, não se trata de um ou outro, e talvez possamos pensar que esses dois princípios se articulam e que o “Há-um” existe sob o fundo de uma inexistência. Mais além dos ditos e das intenções, numa análise, podemos fazer a experiência de um dizer inédito, e esta faz ressoar a pulsão e separa os objetos que estão presentes no circuito pulsional. Isso é um efeito de interpretação que incide nessa separação. Essa operação é sempre uma aposta e pode produzir um giro no discurso, deixando um resto que escapa ao significante e à decifração. Esse resto, desprovido de sentido prévio, chega pela ressonância como uma tentativa de cernir esse ponto de real que a interpretação não alcança, o que aponta para o impossível. O discurso analítico fisga algo desse resto, produzindo um “se virar” com o pulsional que habita o corpo.
No Seminário 23, Lacan vai dizer “deixemos o sintoma o que ele é, um acontecimento de corpo, convergência de palavra, gozo e corpo”[8].
Uma pergunta que nos fizemos no cartel e que acho que o Marcus tocou em seu trabalho é: qual é o lugar do inconsciente nesse campo uniano? Como podemos pensar isso? No Seminário 19, Lacan vai dizer que esse “Um” se repete, mas não se totaliza por essa repetição que se apreende dos nadas de sentido feitos de contrassenso a serem reconhecidos nos sonhos, nos lapsos ou até nas palavras do sujeito, para que ele se dê conta de que esse inconsciente é o seu, seu como saber — o saber como tal, e isso afeta. Algo desse “Um” está presente aí. Antes mesmo da entrada na estrutura gramatical da linguagem, a língua, como Marcus ressaltou, a materialidade sonora do significante, atesta a presença da letra. A contingência e o fora de sentido na linguagem são vestígios desta presença, são encontros inauditos e casuais que recebemos pela voz, pelo som, pelos ruídos na entonação, provocando afetos e sofrimento.
O ouvido, diz Lacan, no Seminário 23, “é um orifício que não pode se fechar”[9] e, por isso, o impacto das vozes escutadas ferem o corpo, e os autistas atestam isso. Esses vestígios, podemos dizer, não estão à procura de um deciframento, de um levantamento da barra do recalque, não estão escondidos. São termos solitários que não estruturam a cadeia significante, que a interpretação/decifração não alcança, e, caso isso fosse possível, levaria a análise e a interpretação à infinitização. Então, podemos pensar a letra, que é essa que está acoplada ao sintoma, como Lacan reescreveu, como um conjunto de restos que se precipitam num paradoxo. É impossível dizer tudo, e, nesse limite, “a letra se diz”.
Quando Marcus André ressalta o nó do sintoma, a escrita do nó como o que condensa palavra e corpo são as ressonâncias, o som, que nos orientam a dizer que essa amarração para Lacan é o “acontecimento de corpo”, enodamento que fixa um modo único de gozar. Como Marcus ressaltou, nesse acontecimento de corpo, não é só memória/marca, é também pulsional, é efêmero. O corpo falante, conjunção de fala e gozo no ponto mais singular do sintoma, é o que surge como acontecimento de corpo. Nossa pergunta é: o “Há-um”, estaria ele no lugar dessa contingência do acontecimento de corpo como aquilo que cessa de não se inscrever?
Ana Tereza Groisman: Marcus André tem o hábito de nos trazer para o improviso. Recebi hoje de manhã o texto dele e pensei minha pergunta a partir de uma parte que ele não leu agora!
Vou seguir com o que tinha planejado e vemos se em algum momento você retoma o que iria dizer. Peguei dois pontos do seu trabalho que me interessaram quando estava lendo É tudo difícil: como é que isso orienta a clínica, como isso nos interessa? O que o último ensino de Lacan traz, de alguma maneira, em termos de avanço clínico? Como você chama: ferramenta clínica, instrumento. Como operar na clínica a partir do último ensino de Lacan? Acho que esta é a pergunta que resume todos os cartéis, e mais a fala do Marcus hoje. Manter o pé no chão, no chão da clínica, mesmo quando o que nos orienta nos força um pouco a devaneios.
Quando avançamos em relação a esse último ensino, esses conceitos-ferramenta não parecem muito pé no chão, como Marcus disse. E nós nos movimentamos entre o significante e o gozo, entre o Um e o múltiplo, entre o ser e a existência, as partes e os elementos, enfim, isso vai nos desorientando e nos reorientando.
A primeira coisa que me chamou a atenção quando li o seu texto pela primeira vez, foi que você não vai pela questão dos registros. Quando diz do Um a partir do que não é, quando fala do Um do patriarcado como aquilo que estaria bem no campo do domínio do simbólico, digamos assim, você faz uma definição maravilhosa, que também não leu: o poder da cadeira vazia do fundador. Do outro lado, a paranoia, o imaginário, algo da identificação, do ídolo, do inimigo, da irmandade. E o Um da psicanálise, Um do gozo, opaco ao sentido, pura presença que estaria em afinidade com o real. Então, a primeira pergunta: por que você não foi pelo lado dos registros?
Outra questão que você tirou foi a da escrita. Interessante quando você afirma que a análise procede pela via da escrita do começo ao fim, e ainda aproxima essa não da escrita de um texto, mas sim da escrita da ordem de uma poesia concreta. Na nossa conversa você falou sobre isso, e pulou isso no que leu agora. Você a aproxima da poesia concreta, e, da primeira vez que li, pensei que podemos extrai-la do texto literário. Podemos pensar que, nas epopeias, novelas e romances, de alguma maneira, um ponto de encruzilhada material que condensa uma série de sentidos — foi isso que você colocou na primeira versão, como a definição dessa escrita — poderia ser pinçado desse texto. Isso foi o que eu pensei a princípio e fiquei feliz com essa conclusão. Mas, li de novo e me dei conta de que não é bem disso que se trata, não é exatamente garimpar e de repente uma pepita surgir. Não é esse o movimento que acho que você está propondo.
O ponto de encruzilhada material teria uma outra temporalidade, seriam dois movimentos distintos: esse em que o ouro está lá, é só a gente mexer que vai aparecer uma pepita. E o outro, que seria o: “tá amarrado em nome de Lacan”, que penso ter um ponto diferente, de uma escrita original, de algo novo, que está no testemunho de passe, em que justamente o que aparece no final da análise é uma escrita absolutamente nova. O “OMO” não tinha aparecido até então. E não que não esteja articulado aos restos fantasmáticos, como você mencionou — tem essas águas que correm, limpar a sujeira do pai —, mas tem algo que “se amarra em nome de Lacan” e de uma forma completamente original.
Então, isso que se amarra, essa escrita, retomo o que você trouxe dos conjuntos: ele resiste à contagem, mas ele pode ser representado por essa escrita, isso que amarra. A escrita do nó, entendo agora, como tendo uma temporalidade diferente dessa da associação e das reminiscências. Algo resta, ao mesmo tempo em que é esvaziado e algo se acrescenta. Pensei se a clínica das psicoses, de certa maneira, nos ajuda a pensar nisso, na invenção de algo novo que possa amarrar.
Em relação ao que a Paula trouxe, do “Há-um” existindo sobre um fundo de inexistência, no nosso cartel[10] chegamos justamente no contrário. Primeiro seria o “Há”, e o “Não há” viria depois, no apagamento do que há, o que se coloca como pura presença.
Outra coisa que pensei é que sempre recorremos ao final da análise para falar dessa escrita, e no trabalho do Marcus ele fala que do começo ao fim ela está presente. Então, faço um convite a todos para pensarmos nas entradas em análise. O que dessa entrada em análise se escreve do que tem ali, e qual é a função do analista nisso que se escreve. Era isso.
Debate
Maria Silvia Hanna: Minha questão é a de como fazer entrar a lógica do Um nos corpos aprisionados. Se podemos voltar a esse ponto da diferenciação entre o Um da repetição e o Um da iteração. Saber sobre a diferença do Um, já que ele está desde o início, colocado por Freud como o traço unário, e Lacan vai retomar isso na repetição. Por que ele precisa introduzir o “Há-um”? O que estava faltando para que se fizesse necessário utilizar essa lógica para entender o que fazemos?
Rodrigo Lyra: Marcus, você começou a sua fala se referindo às formas coletivas, ao laço social, e aos poucos foi caminhando para esse “Há-um” num nível individual, do passe e da análise. Mas o quanto esse “Há-um” pode orientar também a visão de algo mais coletivo, mais amplo e não só a construção do fim de análise? Se é que pode. Estamos acompanhando os caminhos do Encontro Brasileiro e acho que também há nele a pesquisa sobre os laços sociais, como enxergar coletivos, como entendê-los.
Maria Inês Lamy: Boa noite! A minha questão é o “Há-um” e o objeto. Como seria essa relação ou não relação entre os Uns e o objeto? Lembro que já li este relato de passe, mas não lembro o nome da analista.
Marcus André Vieira: Marie Hélène Blancard.
Paulo Vidal: Há uma coisa curiosa, e mesmo engraçada. Vocês usaram várias vezes o que em francês se chama partitivo. O “Há-um” é um “Há-disso” nesse texto, não “Há-disso”. A grande questão é que o partitivo é gramaticalizado em francês. Nós usamos o partitivo, mas não usamos um termo como partitivo. Isso tem a ver, inclusive, com o que a Maria Inês Lamy perguntou. Se tomamos os números inteiros racionais, qual foi o primeiro grande obstáculo a que se chegou? A raiz de 2, que é um número irracional. Então, vamos dividindo-o, até que se chega num número irracional e nunca se consegue esgotar esse número, nunca se consegue numerá-lo completamente. Esse número irracional, a raiz de 2, tem a ver com o objeto a. É importante considerar o “Há-d’um” porque há vários tipos de Um. A interpretação corta e são vários tipos de Um que surgem. Por exemplo, mesmo uma multiplicidade, ela é Um. É sempre a partir do Um. Precisamos considerar isso.
Marcus André Vieira: Só queria comentar: quem vem primeiro, a inexistência ou a pura presença? Não conseguiremos determinar. É verdade o que Paula falou, e é verdade o que falou Ana Tereza. Também não quer dizer que tanto faz, que é uma gangorra, mas dizer primeiro o negativo e depois o positivo, ou o contrário, depende de onde se está. Geralmente, nas análises, começamos com o negativo e encontramos aquele gozo da continuidade depois. E por isso que aparecem no final da análise, nos passes, porque as análises são de neuróticos e são os neuróticos que vivem no negativo… nem sempre, nem todos e nem todas as análises, também. Posso imaginar uma análise que começa com gozo e será preciso fazer um furo de algum jeito. Mas, se quisermos fazer um furo em alguém que não está nele, trazendo o furo do analista para dizer “olha só o furo”, ele não está nem aí. É só pegar o capitalismo, não precisa ser psicótico. Ele não está nem aí para essa história de falta. Essa é nossa dificuldade.
Então, acho que temos que nos imbuir dessa ideia de algo que amarra, que produz o furo, e por isso a ideia do nó. Não temos furo para dar e nem para fazer. Isso acontece como um ato — e quem faz? É o analista? É o analisante? Invenção sem inventor, uma invenção da análise.
Maria Inês perguntou o nome da AE deste passe. Não falei antes porque o nome dela é “Blancard”, tem a ver com o branco! Acho que se formos para o nome próprio, vira quase “foi Deus que falou que ela tinha que mexer com o branco só porque estava no nome dela”. Podia não ser. Estou tentando me interpretar. Por que fiz assim? Era para montar um recorte do caso para cá e nele não aparece o nome próprio, que vem da família e das origens e, por isso, ela teria que ser uma lavadora, por causa do “Blancard”.
Ainda nesse sentido, tem também a montagem — que não é o passe, eu que construí assim, um pouco imaginariamente, esquematicamente — em que o objeto a é a mancha. É a mancha que está na fantasia dela, há sempre uma mancha que tem que ser lavada. Quando estamos no registro do OMO, a mancha deixou de ser real. Ela continua existindo como resto sintomático, fantasmático, mas ela está trabalhando com uma espécie de vida, um contínuo da vida e a mancha já não é mais um real. Talvez o contínuo da vida seja mais real, o que chamei de liquefazer, da liquidez da vida. Ela não falou desta forma, fui eu quem disse isso. Isso é mais real do que a mancha. Então, para a nossa discussão, como é que fica a função do resto em relação ao Um do gozo? Acho que ele perde em “real”, e não que ele não continue lá.
Paula Borsoi: Quando Maria Silvia falou sobre a iteração e a repetição, me lembrei do texto “O Um é letra”[11] do Miller, em que ele faz essa diferença. Ele diz que Freud chamava de castração o movimento da linguagem, de falar na análise. Aconteceria ali uma perda de gozo e Miller chamava isso de castração. Ele diz que Lacan vai englobar nessa castração a fala e a perda de gozo na linguagem, mas ele vai incluir a desregulação. Ele vai dizer que tem algo aí que itera e não conta. É sempre um, não acumula. Não tem como aquilo se perder na linguagem. Achei essa uma diferença interessante, a desregulação do gozo, que Lacan também chama de castração e inclui aí alguma coisa que itera: um, um, um…
Marcus André Vieira: Não vou me estender, mas quero voltar sobre a questão do Rodrigo e da Maria Silvia. Acho que Paula mostrou, tem aquela frase do Deleuze, “O alcoolista sempre bebe no mesmo copo”, e que nos leva para as adições, o que fica parecendo algo patológico, mas isso que estou tentando trazer como o liquefazer da vida é sempre a mesma. Muito diferente do traço unário, que nunca é igual a ele mesmo. É sempre um traço, e o segundo já não é igual ao primeiro. E o primeiro? Bom, ele veio ao acaso, então, ele não era nada. Mas quando é que surgiu o traço? Entre o um e o dois. Ele é sempre diferente dele mesmo; se ele for traço, o segundo já não é igual ao primeiro. Então isso é a repetição. A iteração é isso que é sempre o mesmo, como Paula falou.
Rodrigo, eu remeto à fala da Flávia Cera. Perguntei algo nesse sentido também na ocasião de uma preparatória do Encontro. Ela falou “são as duas coisas”. Respondi: mas o discurso analítico é o discurso desse nó que se faz como ação, então não dá para se estabilizar o coletivo ou ele pode ser uma nova forma de coletivo? Ela falou “acho que tem que ser e”. Então, ele é uma ação e uma nova forma de coletivo. Uma aposta arriscada. Quer dizer, o que seria uma forma de coletivo em volta disso? Temos que nos perguntar se podemos pensá-la. Costumamos responder de forma rápida que é a Escola, mas o que é a Escola como nova forma de coletivo?
Maria do Rosário: Achei importantes estas duas características do debate que vocês trouxeram hoje: 1) colocar o pé no chão, e 2) o que é operatório desses conceitos? Senão, as coisas ficam idealizadas e fora da nossa prática.
Então, para entrar no debate, pensei em porque Lacan precisou dizer que “Há-um”. Em “Totem e tabu” há o gozo mítico do pai, o pai já entra morto. O gozo como mítico impedia de localizar, justamente, o gozo do impacto do significante sobre o corpo, o gozo que existe — “Há-um” — na vida de cada um. Na trajetória de cada sujeito, há uma experiência de gozo sem sentido, sem nome, opaca e que existiu, que existe, por isso acho que Lacan precisou marcar esse “Há-um”.
Como se vai desse Um ao Outro, como é que se entra na série? E tem a questão interessante tocada por Rodrigo, que é a do coletivo. O que desse debate produz uma nova forma de estar com o Um no coletivo? Quer dizer, você não se dissolve no coletivo. Para ir do Um ao Outro, é preciso escrever um vazio. Não é saber se foi o ovo ou a galinha, mas saber que essa experiência de gozo do Um não faz todo, como Paula marcou. Não é totalizante, não é totalitário, e nem é mítico, nem é todo. Esta experiência de gozo confronta cada um com a perda, com um não-todo. É só aquilo ali, e que se reitera sem que se consigar encontrar o gozo primeiro. Aí entra a repetição.
Importante localizarmos o que o Um muda na forma de estar no coletivo. Quando você se reconecta com o Um, você muda. É uma forma singular de estar no coletivo que pode fazer série, é um entre outros e não um absoluto. Acho que esse é um debate que vai produzir muito efeito na nossa prática clínica e institucional.
Ruth Cohen: Gostaria de pedir se Marcus puder comentar o conjunto vazio que toma estatuto de zero para que haja a sequência dos números pelo apagamento desse um original, que é apontado por Lacan e por Miller.. Miller faz aí um apontamento para o princípio da associação livre na clínica. Podemos pensar nestas partes como subconjunto de todos os conjuntos, conjunto vazio e os elementos, o zero talvez como um elemento? Podemos fazer algum tipo de conexão entre o dito e o dizer? Haveria um dizer que se extrai, por exemplo, no caso que você trouxe, o OMO, essa escrita que antes tinha toda uma vertente fantasmática, em que o objeto a tinha uma forma de gozo no sentido, e que passa por um certo gozo opaco. Você não coloca o OMO como um significante que tem um sentido, mas você coloca como letra O-M-O. Então, se podemos pensar nesse “um dizer”, que seria a extração do Um na cadeia da associação livre.
Iordan Gurgel: Quando Ana Tereza falou que o “Há-um” é primário e que depois não Há, tem a ver com a questão entre o existir e o ser. Que o existir venha antes de “há” significante, “há” gozo, “há” uma marca de presença e de ausência, de um S1 que não remete ao S2, mas que deixa essa marca indelével em que depois vem o S2 e vai se constituir a cadeia significante. É por isso, talvez, que Lacan tenha se interessado em fazer essa diferenciação entre o Um da repetição e o Um da iteração. Com o “Há-um” há interação porque o que vai se repetir é marca de gozo, claro que a partir da incidência do significante.
Isso leva também ao que Paula trouxe em relação ao sintoma, não é pela revelação do sentido que vai se resolver o sintoma, assim a constatação de que aí é o modo de gozo que pode arrefecer, mas não vai desaparecer. O que entendemos sobre a iteração tem a ver com isso, com a marca de gozo indelével que vai incidir no significante e vai introduzir a cadeia. E aí sim vai se tratar também da repetição, mas a iteração é da marca de gozo. Neste sentido que nos interessamos no que ressoa no corpo, já que o “Há-um” que tem a ver com o “não há relação sexual”.
Marcus André Vieira: . O texto “A sutura”,[12] do Miller, com 25 anos, era para dizer que sem o zero não tem o um[13]. Então, não há o um elemento, que não é o nosso Um de gozo. Caso este um não esteja relacionado ao zero, a uma falta, a algo que é um ponto cego, ele pode virar parte. A estabilidade dos uns não está dada. O zero é necessário para estabilizar os uns e começar a contagem. Aí o um é primeiro estabilizado com relação ao zero, porque o zero é o excesso que virou o vazio. Agora temos um “um” que não é o vazio, e um “dois” que é um mais “um”, e “três”…[14] Esse é o trabalho de Frege nesta história. A diferença entre o zero e o conjunto vazio talvez dê para ser por aí, pois é bem clínico também.
Niraldo de Oliveira Santos: Boa noite pessoal. Agradeço a iniciativa da EBP-Rio para a construção dos cartéis.
Como Marcus deu esse tom de pé no chão, voltar para a clínica, gostaria de pedir a você e à mesa sobre a tentativa de diferenciar os corpos aprisionados pelos discursos dos corpos aprisionados pelo gozo. No recorte que você traz deste testemunho, podemos dizer que aqui o “sujo” seria uma forma de estar aprisionado pelo discurso, mas também aponta para uma forma de gozo. Uma coisa não vem sem a outra no discurso. Queria te ouvir um pouco a respeito disso.
Outra coisa, se Marcus considera que o OMO, essa marca, letra seria colonizar algo dos restos. Cingir e marcar como letra seria dizer resto colonizável.
Marcus André Vieira: Só agradecendo por muita coisa boa[15]