“O que se lê, é disso que falo, posto que o que digo está consagrado ao inconsciente, ou seja, ao que se lê antes de mais nada.”[1]
“A própria defasagem entre escutar e dizer, entre escrever e ler organiza para nós o lugar da interpretação analítica.”[2]
Provocadas pelo trabalho iniciado na ocasião do Colóquio “Ler um dizer”[3], organizado pela diretoria de Biblioteca da EBP Seção Rio, escolhemos continuar a discussão a partir de dois testemunhos de passe de Veronique Mariage[4], intitulados “Quando está escrito…” e “A voz (via/vozes/voto) do tédio”, para formular algumas questões sobre a relação do que se escreve a partir do que se lê e a sua articulação com o gozo que itera. Essa conversa ganha lugar, ao longo do ensino de Lacan, quando ele constrói a passagem da interpretação à tradução, que joga com o sentido, à interpretação-corte que joga com a matéria sonora equívoca e remete à opacidade do gozo, fazendo destacar o ato do analista.
O que está em jogo nessa passagem é a introdução de um limite ao monólogo autista do gozo, através da modalidade do impossível. “Ao introduzir essa modalidade que rompe com a associação livre da fala, ao estabelecer um certo isto não quer dizer nada, a interpretação que passa pela fala passa para o lado da escrita, única capaz de se encarregar do furo do sentido e do impossível”.[5]
Mariage trabalhava como professora de religião católica em uma escola de ensino secundário especializada para meninas. Esse ensino, na Bélgica, acolhe todas as crianças com fracasso escolar. Um encontro com Alexandre Stevens, jovem psiquiatra e psicanalista, atravessado pelo ensino de Lacan, fez enigma para ela e a levou à análise.[6]
Ela nos faz saber, através de seus testemunhos, que o seu percurso analítico foi marcado por uma grande dificuldade em tomar a palavra, uma vez que “a fala diz muito e dá acesso a uma verdade insuportável”, qual seja, a de que não há verdade. Calar era seu modo de falar, de gozar e de pedir, insaciavelmente, amor. “A sessão perfeita tinha sido aquela passada em silêncio, encontro com uma pura presença, corpo-a-corpo”[7], diz ela, “mas desde então, o analista foi quem passou a dar a voz”, encarnando assim a posição de objeto. Satisfazia-se com a presença do analista, pensando que isso poderia durar o resto da vida, num circuito de gozo pulsional que se infinitizava, um “não cessa de se escrever”.
Os encontros com o analista aconteciam em dois espaços diferentes, a análise e o curso que ele ministrava. Ela tinha o costume de fazer as suas sessões logo após ouvir o curso de seu analista e, certa vez, ela o ouve dizer:
As pessoas vêm especialmente falar a um analista as palavras que lhe foram ditas ou que não lhe foram ditas quando elas as esperavam. Essas marcas e falas, nós as encontramos quando as esquecemos ou, quando sempre nos lembramos delas, encontramos a ocasião de explicitá-las, comunicá-las, ver suas consequências de longo alcance.[8]
Logo em seguida, na sessão, Mariage rompe o silêncio habitual e diz ao analista com ironia: “Você sabe o que o meu pai dizia sempre aos seus numerosos filhos? ‘O trabalho é uma punição do bom Deus’”. “Mas talvez”, ela acrescenta, “eu nunca tenha dito isso na análise”. O analista exclama: “Ora veja! E eu aposto que todos os seus filhos trabalham como loucos”. Ele se levanta, pega seu caderno e sua caneta e diz: “Repita isso. É formidável, vou anotá-lo”.
A analisante fica perturbada, repete o que acabara de dizer e acrescenta esse pedaço de frase: “Meu pai dizia: ‘Vocês devem saber que o trabalho é uma punição do bom Deus’”. O analista repete: “Vocês devem saber!”. Ele anota cerimoniosamente e corta a sessão. E, aqui, acentuamos o destaque que o analista confere a esse adendo da paciente, registrando de maneira contundente o dito paterno que, como significante mestre, organizava sua vida e preenchia o vazio que se travestia de tédio.[9]
Até então, ela dera um único sentido a esse enunciado: não fazer do trabalho uma punição, mas, ao contrário, era preciso fazer aquilo de que se gostava. Ao sair da sessão, vem-lhe à mente que seu pai, de fato, lhe dizia muito mais. Na semana seguinte, diz ao analista: “Você não sabe o que fez quando escreveu essa frase”.[10] Segundo ela, a psicanálise “está ali onde não se a esperava, ela só é pega na surpresa, no Witz e na tykhé”[11], e, em seguida, lhe diz a frase completa: “Vocês devem saber que o trabalho é uma punição do bom Deus: não sou eu quem diz, está escrito”. O analista lhe responde: “Então, às vezes, eu sou analista”, dando a ver a dimensão imprevisível, porém orientada, desse ato. Segundo Monribot[12], o analista “vem, por antecipação e sem que ele o soubesse, completar através desse ato a parte faltante da lembrança”, já que a analisante só pode recuperar essa memória a posteriori, constituindo o que o autor nomeia como um “belo exemplo de construção do esquecido”.
O “está escrito” evocado na mise-en-scène do analista a reenvia então ao texto de um pesadelo[13], ocorrido pouco tempo antes, em um momento em que há muito não sonhava e já tinha se passado, na análise, o período de decifração do inconsciente. No pesadelo, diante da árvore que continha o fruto proibido, estava a criança morta com a qual ela estava identificada, e lhe falta justamente a voz do pai. Nesse ponto, ela localiza, para além do pai, “um ponto de vazio onde se precipita o gozo do sem limites, que a voz da sentença do pai vinha recobrir e fazer borda.”[14]
Como nos lembra Miller: “O psicanalista lê, mas não nos astros, não nas linhas da mão, nem nas borras de café, nem em bolas de cristal; ele lê no que se diz.”[15] Podemos então pensar que o ato do analista ao escrever a frase, orientado pela leitura do dizer da analisante, a fez escutar a injunção paterna escrita no corpo?
Nas palavras da própria Mariage, “através do ato de escrever, o analista se apropriou do gozo que lastrava essa marca que, desde então, pode circular e perder-se”[16], fazendo com que ela pudesse entrever “as duas faces de sua relação com a voz que, de uma vez, separam-se: a voz portadora de sentido, aquela da sentença que marca seu destino, e a voz da qual ela goza e que ela escuta.”[17]
Monribot nos chama atenção para o fato de que o ato analítico – escrever – “vem debruar o furo da voz desaparecida e permitir uma separação sem angústia desse objeto desincrustado do Outro”.[18] Ela se vê precipitada para fora do dispositivo analítico ao proferir um sonoro “Zut!”[19] (ir às favas), que o analista substitui por um “zut-zut e zut”, e esse concerto assinala uma certeza prematura ligada à des-totalização do Outro. Ela então oferecerá sua voz a essa “aventura libidinal que é a Escola”[20], ao passar do “fazer ouvir suas conclusões”, tão pouco conclusivo no primeiro passe, ao “fazer-se ouvir”.
Um segundo ponto que gostaríamos de trazer para o debate poderia ser resumido assim: a análise ensina? Essa interrogação toma lugar a partir do que foi discutido em um seminário[21] recente de Romildo do Rêgo Barros na Seção Rio, que tem como tema a frase de Lacan “O que a psicanálise nos ensina, como ensiná-lo?”[22]. Graciela Brodsky[23], citada por Romildo, nos diz que se trata do que sua análise a ensina, ou seja, que é possível um efeito de transmissão a partir do que cada praticante recolhe e elabora de seu próprio percurso analítico e, nesse sentido, o passe poderia ser tomado como um dispositivo “ensinante”, mas não só ele.
Encontramos no texto de Mariage, “Uma prática em instituição orientada pela psicanálise pura”, algumas passagens que articulam sua posição subjetiva ao longo de seu processo analítico, a relação com seu fantasma e com o que causa seu desejo, e os desdobramentos disso em sua prática. A certa altura, ela pergunta: “o que a experiência do tratamento do praticante traz para seu trabalho em instituição?”[24], a propósito de seu trabalho de décadas na Fundação Courtil, criada, segundo ela, para responder “à necessidade de se criar um laço no qual se pudesse levar em conta um real intratável pelo discurso do mestre, ou então o que esse discurso produz como dejeto”.[25]
Diante da questão aberta sobre seu papel institucional no Courtil – os trabalhadores não se engajam sob um título que definiria sua função, mas “cada um se implica como sujeito e com o que causa seu desejo”[26] –, Marriage nos diz que por mais que isso fosse trabalhado em seu próprio tratamento, era uma “questão sem resposta”. Assim, no espaço vazio da desidentificação, foi se precipitando seu fantasma – “não deixar cair os ‘deixados cair’”, o que fez com que ela trabalhasse muito por anos, e com muito afinco, com os casos mais graves e “intratáveis” da instituição.
Através do trabalho nas supervisões clínicas, com todos os membros da equipe – inclusive os que não estão engajados em uma análise –, “a causa do desejo sustentada pelo fantasma pode transformar-se em desejo de saber”. Na sua função de diretora terapêutica, que Mariage afirma que lhe foi confiada após um momento importante de seu tratamento, uma interpretação de seu analista a fez perceber que era ela a “deixada cair” que tentava salvar. Mesmo com essa pontuação do fantasma, não foi possível desprender o gozo que ali se alojava, e tanto ela, quanto a equipe sob sua direção, continuavam submetidas ao imperativo do trabalho.
Desse modo, ela nos transmite que sua posição só foi radicalmente modificada a partir da interpretação na qual o analista, ao escrever a sentença superegoica do pai, permitiu que fosse desvelada uma significação inédita. Diz ela que, a partir daí, percebeu o quanto o gozo da punição havia orientado sua vida e seu trabalho[27], e que isso teve como efeito uma “prática aliviada”, tanto para ela quanto para a equipe. Nesse caso, a relação moebiana entre a posição de analisanda e a prática da psicanálise na instituição foi tocada, e algo de um deslocamento se produziu, com efeitos que vão muito além de uma mudança apenas para o próprio sujeito que a experimenta. E não seria justamente essa a aposta da psicanálise?
[1] Lacan, J. O seminário livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008, p. 271.
[2] Miller, J.-A. O escrito na fala. In: http://www.opcaolacaniana.com.br/pdf/numero_8/O_escrito_na_fala.pdf.
[3] Realizado em 23 de março de 2024, na EBP, Seção Rio.
[4] Mariage, V. Quando está escrito… Opção Lacaniana, n. 33, jun. 2002.
[5] Laurent, É. A interpretação: da escuta ao escrito. Correio, n. 87, 2022.
[6] Mariage, V. Uma prática em instituição orientada pela psicanálise pura. In: Miller, J.-A. (org.). Pertinências da psicanálise aplicada. São Paulo: Forense, p. 60.
[7] Mariage, V. A voz (via/vozes/voto) do tédio. Opção Lacaniana, n. 35, jan. 2003, p. 25.
[8] Mariage, V. Quando está escrito…, p. 29.
[9] Mariage, V. A voz (via/vozes/voto) do tédio, p. 26.
[10] Grifo nosso.
[11] Mariage, V. Quando está escrito…, p. 27.
[12] Monribot, P. De viva voz. Opção Lacaniana, n. 33, 2002, p. 32.
[13] Mariage, V. A voz (via/vozes/voto) do tédio, p. 26.
[14] Mariage, V. A voz (via/vozes/voto) do tédio, p. 26.
[15] Miller, J.-A. A palavra que fere. Opção Lacaniana, n. 56-57.
[16] Mariage, V. Quando está escrito…, p. 30.
[17] Mariage, V. A voz (via/vozes/voto) do tédio, p. 26.
[18] Monribot, P. De viva voz, p. 33.
[19] Mariage, V. Quando está escrito…, p. 30.
[20] Monribot, P. De viva voz, p. 33.
[21] Disponível no canal da EBP Rio: http://www.youtube.com/@canaldaebprio3009.
[22] Lacan, J. A psicanálise e seu ensino. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 440.
[23] Brodsky, G. Los psicoanalistas y el deseo de enseñar. Buenos Aires: Grama Ediciones, 2023.
[24] Mariage, V. Uma prática em instituição orientada pela psicanálise pura, p. 59.
[25] Mariage, V. Uma prática em instituição orientada pela psicanálise pura, p. 60.
[26] Mariage, V. Uma prática em instituição orientada pela psicanálise pura, p. 63.
[27] Mariage, V. Uma prática em instituição orientada pela psicanálise pura, p. 64.