“Podemos escrever uma porção de coisas, portanto,
sem que isso chegue a nenhum ouvido. Mas está escrito”.
Lacan, 1971/2009, p. 57
Introdução
É comum, na atualidade, encontrarmos livros autobiográficos de autores usuários de álcool e outras drogas, que testemunham sua história de vida, na intenção de demonstrar o que não é moralmente aceito. O exemplo de uma vida a não ser repetida e seguida. Há uma intencionalidade moral e uma mensagem, nem sempre subliminar, mas muitas vezes explícita, no sentido de um endereçamento e um imperativo ao leitor: não repita minha história, não use drogas.
A escrita autobiográfica de sujeitos adictos se apresenta como uma forma de revestir a experiência radical da intoxicação, do excesso de gozo que invade o corpo. Essa escrita sobre os desvarios da intoxicação, da manipulação do corpo regida pelo gozo autístico, confere ao sujeito escritor uma certa envelopagem imaginária da experiência corporal vivida com a droga.
A ironia de Burroughs revela seu estilo contestatório e permite-nos vislumbrar a intencionalidade de sua obra que, em nada, se atrela à moralidade e aos bons costumes. Burroughs nos interessa, justamente, por sua obra não conter esse caráter moral e prescritivo. Ainda que seja uma obra escrita ao sabor da intoxicação, e de o autor ter hesitado em publicá-la e até mesmo algumas passagens nem lembrar de tê-las escrito. Há uma abertura nessa escrita que desvela algo dos efeitos no corpo do uso de substâncias, de um gozo autístico, que ganha novos contornos com a escrita.
Para Lacan, a escrita é um artifício, é um fazer de artífice, um artefato que bordeja um vazio. A escrita permite cavar um vazio no qual há um excesso de gozo. Nesse vazio é possível alojar o gozo e “invocá-lo com seu artifício” (Lacan, 2009, p. 118).
Um saber-fazer com o excesso de gozo que invade o corpo. Assim, caminhamos na direção ética da obra de Burroughs, seguindo as orientações de Lacan sobre a ética da psicanálise. A dimensão ética, no ensino de Lacan, é tratada, em primeiro lugar, a partir de uma discussão sobre o que a distingue de uma dimensão moral, baseada em preceitos e valores predeterminados que servem a uma lógica de coação social. A moral, ao prescrever seus ideais de conduta, anula a singularidade e a dimensão do desejo. A ética para a psicanálise de orientação lacaniana é intrinsecamente atrelada ao desejo.
Considerando que cada autor tem um estilo próprio de narrar suas vivências intoxicadas, elegemos a obra de William Burroughs. Essa obra se inscreveu na cultura de sua época, no âmbito da contracultura americana datada de 1950 e 1960 e do movimento beat. Sua obra engajada e subversiva encontrou na cultura um lugar, um alojamento. Assim como nos despertou para outras linguagens artísticas do autor, a saber, a fotografia, a pintura e o cinema. Um artista numa plena invenção de meios de expressão.
A pista de Virginia Woolf: o traço e a exceção na literatura
Woolf, em seu ensaio “Sobre estar doente” (1926/2014), descreve de forma crua e eloquente experiências de adoecimento, passando por uma pneumonia, por exemplo, até o estado melancólico.
Nesse ensaio, Virginia Woolf destaca um traço comum da literatura de sua época, a saber, seus temas principais talvez tenham sido dedicados ao amor, às batalhas e ao ciúme. Entretanto, ressalta que “os romancistas, poder-se-ia pensar, teriam sido dedicados à gripe; os poemas épicos à febre tifoide; odes à pneumonia; a poesia lírica à dor de dentes” (2014, p. 151). Assim, a autora destaca uma exceção no campo da literatura: autores como Proust e Thomas de Quincey – escritor de Confissões de um comedor de ópio, que conseguiram, em sua pena, descrever algo do padecimento dos corpos.
Mais uma vez, seguimos a pista de Virginia Woolf, em seu escrito “Como se deve ler um livro?” (1932/2014), no qual destaca que sua interrogação se dirige à singularidade do leitor, à sua liberdade e em particular à sua independência, que considera “a característica mais importante que um leitor pode ter” (2014 p. 54). Woolf destaca: “[…] bem mais comum é que um livro não tenha nenhuma pretensão de ser uma obra de arte” (2014, p. 57).
Aqui cabe introduzir um diálogo entre Woolf e Lacan. Para Woolf nem todo livro é uma obra de arte, ainda que a autora nos desafie e encoraje a ler biografias e autobiografias, apesar de não as considerar como obras de arte. Já para Lacan, nem todo livro é um livro de leitura. Sobre James Joyce, Lacan é enfático ao nos dizer sobre sua literatura singular de difícil leitura é um escrito “a-não-ler”.
O escrito como a-não-ler, foi Joyce quem o introduziu – melhor seria eu dizer o intraduziu, pois, ao fazer da palavra um tráfico para além das línguas, ele só se traduz com dificuldade, por ser igualmente pouco legível por toda parte. (Lacan, 2003, p. 504).
Virginia Woolf destaca que:
[…] todas as literaturas, à medida que envelhecem, têm seus montes de entulho, seu repertório de momentos desfeitos e vidas esquecidas narrados numa linguagem vacilante e fraca que já pereceu. Mas, caso se dê ao prazer de ler do entulho, você será surpreendido e acabará por submeter-se mesmo às relíquias de vida humana, vazadas fora do molde. (2014, p. 60)
Esperamos neste artigo surpreendê-los com o que conseguimos extrair da obra Burroughs e de sua vida fora dos moldes do sonho americano de sua época, que tanto criticou e subverteu.
Com Lacan, deparamo-nos com o que seria um livro de leitura. Lacan se refere, por exemplo, ao “guia de horários das estradas de ferro” como um recurso, mas não um livro de leitura.
Mas, a função do escrito, nesse caso, não constitui o guia, e sim o próprio caminho da estrada de ferro. E o objeto (a), tal como o escrevo, é, por sua vez o trilho por onde se chega ao mais-de-gozar aquilo de que se habita, ou em que se abriga, a demanda de interpretar. (Lacan, 2003, p. 505)
Seguimos os trilhos do objeto, muito caro à compreensão do estilo de uma obra. Na estrada de ferro de nossa pesquisa, percorremos a escrita de Burroughs, uma obra, por vezes inapreensível, por vezes inquietante e desconfortável.
É digno de nota lembrar o tratamento dado por Lacan às Memórias de Schreber em seu seminário sobre as psicoses, no qual ressalta que o livro é dedicado a dar um testemunho de seu delírio. Assim, Lacan ressalta que Schreber foi um escritor, mas não poeta. As memórias de Schreber têm um caráter de inscrição num livro, do conteúdo de seu delírio, que traz ao seu leitor inadvertido uma certa dificuldade de acompanhá-lo, pois extrair uma lógica de seu testemunho, de seu delírio, trata-se de uma tarefa para aqueles leitores atravessados por um interesse clínico.
Woolf destaca que “ler é um processo mais complicado e mais longo do que ver” (2014, p. 56). Como diria Lacan, ver, numa análise, trata-se de um instante, algo que emerge numa análise, num certo momento, que requer um tempo de compreender e uma elaboração simbólica para concluir.
O que o autor oferece ao leitor, o que ele cede, o que dar àquele que se encarrega de empreender uma leitura de seus escritos? Seja um romance, uma biografia ou autobiografia. O autor convoca o leitor a uma leitura independente e livre, na medida em que lhe oferece algo de seu estilo, que toca o leitor de maneira particular, a cada leitor, um a um. O leitor, atravessado pela orientação lacaniana, dedica-se a extrair algo de si, no empreendimento da leitura. Essa é uma característica do estilo para Lacan, convocar o leitor, colocar algo de si, no que se escreve por um outro, o autor.
Virginia Woolf se pergunta:
Devemos então nos recusar a ler, porque não são obras de “arte”, essas biografias e autobiografias, por exemplo, a vida de grandes homens, de homens mortos e esquecidos de há muito, que se perfilam ombro a ombro com romances e poemas? Ou convém que as leiamos sim, mas de um modo diferente e com outro objetivo em mira? (2014, p. 57).
Assim, com a pista de Woolf, destacamos uma certa metodologia de pesquisa. O que miramos em nossos objetivos de pesquisa que entrelaça a psicanálise e a literatura? A extração do estilo de William Burroughs, de sua obra ácida que testemunha algo de sua relação com a droga, da crítica ao conservadorismo americano de sua época e de sua sexualidade.
Nosso interesse pelos testemunhos autobiográficos de autores adictos passa pela tentativa de extrair algo do estilo de cada um, uma leitura orientada pela psicanálise. Operando uma aplicabilidade advertida, na qual não é a psicanálise que se aplica à arte, à literatura, mas sim o que a arte nos ensina, como diz Freud, antecipa algo ao analista, do qual nada sabemos.
Woolf destaca a “real complexidade da leitura” (2014, p. 63) e indica que “o procedimento inicial, o de receber impressões com a compreensão mais extrema, é apenas parte do processo de ler; e deve ser completado para que possamos obter todo o prazer de um livro” (2014, p. 63).
Entretanto, nem todo livro é capaz de produzir prazer, alguns, como os livros de nosso autor cativo, Burroughs, não são da esfera do prazer. Trata-se de uma obra subversiva, que por vezes introduz escansões de tempo na leitura. Um tempo para suportar seu estilo transgressor e sua escrita desvairada sobre fragmentos de suas alucinações derivadas da intoxicação. Sua escrita fluida por vezes carece de um ordenamento gramatical, pois que ignora a semântica e oferece ao leitor um certo desconforto.
Roland Barthes, em seu livro O prazer do texto (1973/2013), destaca uma distinção, que muito nos interessa, entre o texto de prazer, evocado por Woolf na leitura do romance, e o texto de fruição, melhor traduzindo, um texto de gozo. Assim, destaca o texto de prazer como “aquele que contenta, enche, dá euforia: aquele que vem da cultura, não rompe com ela, está ligado a uma prática confortável da leitura” (Barthes, 2013, p. 20-21). Já o texto de gozo é:
[…] aquele que põe em estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem. (Barthes, 2013, p. 20-21)
A literatura de prazer é a que leva o leitor a engajar-se na leitura, de modo que “um prazer do qual as primeiras páginas do livro o farão cativo, sem que ele tenha tido que resistir, e que o levará, sem que ele sinta o esforço, até a última das mil e trezentas de seu número” (Lacan, 1998, p. 750).
Muitas vezes nos deparamos com o desconforto na leitura de Burroughs. Almoço nu, por exemplo, é um livro que nem sempre o leitor segue sem esforço até a sua última página e consegue fechá-lo com prazer. As pausas e os intervalos necessários à sua leitura nos permitiram seguir adiante.
Lacan e a literatura
François Regnault, em seu livro Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise (2001), destaca que Lacan, no que tange à arte, dedicou-se a comentar diversos poetas e empreendeu desenvolvimentos bastante extensos sobre pinturas, como as de Holbein e Velázquez. Enquanto para o romance e a literatura, dedicou uma curta, porém precisa, homenagem à Marguerite Duras, inaugurou seus Escritos com um texto emblemático sobre o conto de Edgar Allan Poe, “A carta roubada”, e escreveu um artigo sobre a juventude de Gide, em que trata da psicobiografia realizada pelo psiquiatra Jean Delay sobre memórias, diários, cartas e correspondências de André Gide.
Seu seminário sobre James Joyce se constitui como uma exceção, já que como vimos trata-se de uma obra a-não-ler. Para Lacan, James Joyce colocou “toda a literatura à deriva” (Lacan, 2007, p. 36) e desejou inclusive seu fim. A obra de Joyce cavou um alojamento na cultura, amparada pelo movimento cultural do Surrealismo. Lacan fez da obra de Joyce, já que não pode analisá-lo, como fora seu desejo, um meio através do qual pôde iluminar sua teorização acerca do sinthome, como amarração quaternária de sua aplicação do nó de Borromeu a uma topologia clínica.
Sobre a obra de Marguerite Duras, Lacan lhe dedica uma homenagem. Ao prestar sua homenagem, Lacan se exime de fazer da obra um material de interpretação da posição subjetiva do autor. Assim, ao render sua homenagem, coloca em relevo que algo de um saber sobre seu ensino é revelado no livro sobre o arrebatamento de Lol V. Stein, nele reconhece “onde Marguerite Duras revela saber sem mim aquilo que ensino” (Lacan, 2003, p. 200).
Assim, Lacan aponta que “a prática da letra converge com o uso do inconsciente é tudo de que darei testemunho ao lhe prestar homenagem” (Lacan, 2003, p. 200).
A convergência entre uma prática da letra e o uso do inconsciente abre um trilho de pesquisa para empreendermos uma investigação sobre o que na pena do autor literário se inscreve como uma prática da letra e que antecipa um certo saber próprio à sua época, ainda inacessível para a psicanálise.
Na convergência entre uma prática da letra e o que se reconhece no inconsciente há uma abertura para a apreensão do pensamento de uma época. Brousse, em seu artigo “O saber dos artistas”, destaca que “o artista tem uma sensibilidade particular em relação às modificações das modalidades de gozar de uma determinada época” (Brousse, 2008, p. 54).
Em “Juventude de Gide”, Lacan aborda a obra de Proust, ressaltando que este autor empreendeu, em sua prática da letra, uma articulação entre seu material de vida e sua escrita. “A obra do próprio Proust não permite contestar que o poeta encontra em sua vida o material de sua mensagem. Mas, justamente, a operação que essa mensagem constitui reduz esses dados de sua vida a seu emprego como material” (Lacan, 1998, p. 752).
François Regnault destaca que “com Gide, ou Proust, tem-se então o caso de escritores que tratam suas vidas como material para suas obras, o que seria o próprio da literatura moderna” (Regnault, 2001, p. 32).
Esse traço da literatura moderna, a vida incluída como material da obra, vai um pouco além, na medida em que coloca em evidência o corpo do autor e os seus padecimentos na pena do escritor. Assim, nos diz Lacan: “[…] a significância da mensagem acomoda-se, não convém hesitar em dizê-lo, com todas as falsificações introduzidas nas provisões da experiência, que vez por outra incluem a própria carne do escritor” (Lacan, 1998, p. 752).
A prática da letra provém do testemunho de Lacan, em sua homenagem à escritora Marguerite Duras. O testemunho que inclui a carne do escritor nos interessa, pois é uma forma de a literatura autobiográfica iluminar uma certa relação com o corpo. Como diz Duras: “Encarniçado. Não se pode escrever sem a força do corpo.” (Duras, 1994, p. 23). Há algo do padecimento dos corpos que se inscreve na obra. Lacan aponta que a “cogitação permanece cativada pelo imaginário que está enraizado no corpo. A literatura – tanto a filosófica, quanto a artística, a literária, que, aliás, em nada se distinguem – o testemunha.” (Lacan, Seminário RSI, aula de 8 de abril de 1975).
Assim, ao tentarmos extrair o estilo da obra de Burroughs, nos interessa investigar o padecimento de seu corpo com sua adicção por drogas, ou seja, o que de enraizado em seu corpo se inscreve em sua obra.
Lacan é enfático ao afirmar que o sujeito não é um corpo, o sujeito tem um corpo. É necessário um processo de apropriação do corpo. Burroughs testemunha isso, quando escreve: “Eu estava fora de mim tentando impedir aqueles enforcamentos com dedos fantasmas… Eu sou um fantasma e quero o que todo fantasma quer – um corpo.” (Burroughs, 1992, p. 20-21).
Estilo e invenção
O tratamento dado à questão do estilo no ensino de Lacan parte de suas considerações sobre os escritos de sujeitos psicóticos, interesse destacado em sua tese de doutorado em psiquiatria, datada da década de 1930.
A dimensão do estilo para Lacan está situada em torno do objeto a, com a queda desse objeto, tomado como causa de desejo. O estilo porta um endereçamento e uma destinação. Há um endereçamento ao Outro como lugar de alteridade. Lacan na abertura dos Escritos aborda a questão do estilo, referindo-se ao célebre dito de Buffon: o estilo é o próprio homem. Com isso, avança ao acrescentar a pergunta: “o homem a quem nos endereçamos?”. Lacan destina seus Escritos aos leitores, concedendo-lhes a possibilidade de extração de um objeto singular a cada um, que se articule com as lacunas do seu texto, por vezes enigmático, produzindo aberturas interpretativas. “Queremos, com esse percurso de que estes textos são os marcos e com o estilo que seu endereçamento impõe, levar o leitor a uma consequência em que ele precise colocar algo de si” (Lacan, 1966, p. 11).
Ao destacar o endereçamento, convocando que algo da alteridade do leitor se imponha na apreciação de seus Escritos, Lacan aponta para um laço de interlocução entre o escritor ou o artista que funda um discurso. Ao se endereçar à alteridade do leitor, Lacan convoca sua criatividade, o induz a extrair consequências inéditas de seus escritos, a partir do apoio do objeto em relevo. A abordagem de Lacan aos textos literários evocados anteriormente permite ao leitor empreender uma construção autoral, na articulação com outros autores e outras linguagens artísticas, que privilegiam objetos particulares.
A noção de invenção foi adotada por Miller (2003) para definir os recursos construídos e tecidos de forma particular e original, a partir de materiais preexistentes, fragmentários e residuais que se apresentem acessíveis ao sujeito psicótico. A noção de invenção extrapola o campo das psicoses, e vem coroar a amarração sintomática de cada sujeito em sua singularidade e em suas idiossincrasias. A árdua tarefa de invenção aproxima o sujeito do bricoleur, que é aquele que dispõe apenas de “meios limites, isto é, um conjunto sempre finito de utensílios e de materiais bastante heteróclitos” (Lévi-Strauss, 1989, p. 32) provenientes de resíduos de construções e destruições anteriores. Desse modo, o que se produz com a bricolagem não é fruto de um projeto preestabelecido, mas, sim, um “resultado contingente” (Lévi-Strauss, 1989, p. 32) proveniente da particularidade dos materiais disponíveis. Assim, “sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si” (Lévi-Strauss, 1989, p. 37).
Assim, como o leitor de uma obra é convocado a colocar algo de si em sua empreitada de leitura, o bricoleur, em sua tarefa infinita, coloca algo de si em sua invenção com os objetos que estão disponíveis.
Considerações finais
Para concluir, me remeto a uma passagem do livro A arte de escrever de Schopenhauer, quando aborda os pensamentos escritos que “não passam de um vestígio deixado na areia por um passante: vê-se bem o caminho que ele tomou, mas para saber o que ele viu durante o caminho é preciso usar os próprios olhos.” (Schopenhauer, 2006, p. 129).
Assim, o estilo e a invenção, ambos conceitos na orientação lacaniana, convocam o sujeito a colocar algo de seu, de particular, naquilo que o captura na leitura e na invenção. Concluo com uma citação de Gilson Iannini, em seu livro Estilo e verdade em Jacques Lacan.
“Colocar algo de si” é uma maneira de prevenir esta perda da capacidade de pensar, um convite para que o leitor use os próprios olhos para ver o objeto, caminhe com seus pés, sem se contentar com os vestígios deixados na areia pelo passante. Trata-se de um convite a ler em nome próprio. (Iannini, 2012, p. 282).
Referências
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Lévi-Strauss, C. O pensamento selvagem. São Paulo: Papirus, 1989.
Miller, J.-A. A invenção psicótica. Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise, São Paulo, n. 36, p. 6-16. Edições Eolia, 2003.
Regnault, F. Em torno do vazio: a arte à luz da psicanálise. Rio de Janeiro: ContraCapa Livraria, 2001.
Schopenhauer, A. A arte de escrever. Porto Alegre: L&PM, 2006.
Woolf, V. (1926). Como se deve ler um livro? Mulheres e ficção. São Paulo: Pinguin Classics; Companhia das Letras, 2019.
Woolf, V. (1926). Sobre estar doente. Ensaios escolhidos. Lisboa: Relógio d’Água Editores, 2014.