Em 2015, migrei para Buenos Aires e, depois de alguns anos vivendo no país, comecei a atender em consultório brasileiros que habitavam a mesma cidade. Esse escrito é produto da minha experiência clínica com sujeitos imigrantes e dos encontros do cartel I-migração: a clínica do estrangeiro e do exílio[1], cuja travessia abarca o estudo e a discussão da prática clínica articulada à temática migratória. Meu interesse é interrogar e lançar um olhar sobre o racismo desde sua articulação com o estrangeiro. Para isso, utilizo como textos principais “O infamiliar” de Freud e “O estrangeiro: nossa condição” da psicanalista brasileira Neusa Santos Souza, ambos lidos e discutidos no cartel.
Em meio a tantas questões que permeiam o universo migratório e que, de certa forma, são interessantes e desafiantes, escolhi aquilo que mais me convoca, a saber: a dimensão do racismo na clínica da migração. Essa escolha se deu por eu ter escutado pacientes negros que escolheram viver em outro país, e que nesse processo de adaptação e mudanças buscaram a análise para falar inicialmente sobre a própria negritude e acerca de como as questões raciais os afetam subjetivamente. Percebi que o racismo, vivenciado anteriormente no Brasil, os acompanha no processo migratório e, muitas vezes, é atualizado por alguma cena experienciada no país da migração. No consultório, escuto como cada sujeito lida com a insuportabilidade de ter de se haver com a própria negritude, esse estrangeiro que lhes habita.
As seguintes falas de dois analisantes deixam isso evidente:
Comecei a pensar “nas questões raciais” e em como essas “questões” me afetam, quando vim morar na Argentina. No Brasil, eu não pensava no racismo, achava que não acontecia comigo, inclusive, eu falava que nunca tinha sofrido racismo e hoje vejo que não era assim. Eu achava normal que me perseguissem dentro das lojas, achava que era o trabalho deles.
Foi morando em Buenos Aires que eu tive a consciência de ser negro. No Brasil, era seguido por seguranças em lojas, algumas mulheres seguravam suas bolsas, quando me viam, mas não pensava que era por eu ser negro e, sim, pela insegurança do país. Aqui (na Argentina) os olhares me incomodam, me sinto observado e associo que é por eu ser negro.
É possível afirmar que as feridas ainda não cicatrizadas migraram junto com esses sujeitos e que, na Argentina, eles começam a estranhar aquilo que parecia familiar, para poder familiarizar-se com a própria negritude. No espaço analítico, esses pacientes retornam às cenas dolorosas que marcaram suas vivências e identidades.
Freud, no texto “O infamiliar” (2019), constata que quando o sujeito se depara com alguma coisa que causa um enorme estranhamento, isso desconcerta, suscita angústia e horror, ou seja, gera um desconforto muito grande. Segundo o autor, o estranhamento é oriundo de alguma coisa que a gente conhece, recalcou e aquilo retorna sob a forma de um estranhamento. O estranho-familiar é próprio da experiência do inconsciente de lidar com o desconhecido que estava ali perto, tão perto e tão distante ao mesmo tempo. “O infamiliar remete ao velho conhecido, há muito íntimo” (Freud, 2019, p. 54).
Frantz Fanon (2008), em sua obra Pele negra, máscaras brancas, afirma que “o negro, em determinados momentos, fica enclausurado no próprio corpo”. Na dimensão da escuta clínica, percebi que a vivência em outro país fazia com que alguns sujeitos se deparassem com o duplo da estrangeiridade, e o que me interessa é escutar como lidam com isso. Seguindo a afirmação de uma paciente, em sua primeira entrevista – “Aqui vou ser sempre a estranha do pedaço” –, identifico que em sua fala aparece a dupla face do estrangeiro em um país “embranquecido”: a negra e a imigrante.
Outra paciente fala do seu incômodo com os olhares que sempre recebe ao caminhar pelas ruas de Buenos Aires ou ao adentrar algum lugar específico: “Era muito como olhavam, estavam encarando”. Na sessão, ela se pergunta se é racismo, já que quando comenta com o marido, ele lhe diz que não é: “Ele me diz que me olham porque me acham bonita, diferente, exótica”. Ao falar de uma situação específica em uma cafeteria, relata que duas mulheres a encaravam: “É racismo, me olhavam como se eu não pudesse estar nesse café, olhavam para as minhas mãos, eu estava com a chave do carro na mão […] olhavam como se eu não pudesse ter um carro.”
Os pacientes negros que recebi em consultório tinham uma urgência em falar sobre o racismo sofrido. Buscaram um espaço para falar desses estranhamentos, por não saberem lidar com isso. Como enfrentar um olhar que descoloca? Uma palavra violenta? Pensando nisso, pergunto-me a respeito da magnitude da demanda desses pacientes e da relevância de oferecer um espaço para que possam falar livremente sobre isso.
Encontro-me com o saber não sabido do paciente, diante de minha ignorância. Na clínica, ofereço uma escuta e um espaço para falar sobre essas dores singulares que se articulam com as experiências de ser negro em outra cultura, com tudo o que isso significa para esse sujeito. Acredito que minha função e meu desejo estão ligados a uma aposta na construção de um discurso próprio e, com ele, à possibilidade de sair do silenciamento.
De que (cor)po se trata? Cor e corpo estão em jogo nessa trama. Como se apresenta a dupla face do estrangeiro nessa dimensão? Isildinha Baptista Nogueira (2017) nos ajuda a compreender a questão, quando diz:
O “ser negro” corresponde a uma categoria incluída num código social que se expressa dentro de um campo etnossemântico em que o significante “cor negra” encerra vários significados. O signo “negro” remete não só a posições socais inferiores, mas também a categorias biológicas supostamente aquém do valor das propriedades biológicas atribuídas ao branco. Para além de seus fantasmas inerentes ao ser humano, resta ao negro o desejo de recusar esse significante, que representa o significado que ele tenta negar, negando-se dessa forma a si mesmo pela negação do próprio corpo. Negar e anular o próprio corpo nos torna o sujeito “outro”, visto que só existimos como sujeito em relação ao outro, à alteridade. Ser sujeito é, portanto, ser outro. E ser outro é não ser o próprio sujeito, no caso do negro. (Nogueira, 2017, p. 123).
Segundo Freud (2019), o duplo se apresenta em suas várias graduações e formações. O autor traz o caráter da identificação com o outro semelhante a mim e ressalta que por haver uma apropriação do conhecimento, das vivências e dos sentimentos da outra pessoa, algo se perde, perde-se o domínio do próprio Eu, acarretando em uma “duplicação do Eu, divisão do Eu, confusão do Eu – e, enfim, o eterno retorno do mesmo, a repetição” (p. 58). O duplo, então, assume o carácter do infamiliar, tornando-se uma imagem do horror. “Trata-se, neles, de um apegar-se a fases específicas da história do desenvolvimento do sentimento de Eu, de uma regressão aos tempos nos quais o Eu ainda não havia, rigorosamente, se separado do mundo exterior e dos outros” (p. 59-60).
O duplo é pensado como uma das formas e figuras do unheimliche. Ele pode aparecer como imagem especular ou como uma sensação de pura presença, um vulto. A imagem refletida no espelho, ao se confundir com a imagem do eu ideal, de plenitude, se confronta com a precariedade do Eu – e, aqui, assume o seu carácter terrorífico e ameaçador. Dessa forma nos indica que não somos tão iguais a nós mesmos como gostaríamos, nem tão diferentes daquilo ou daqueles que tomamos por distantes, estranhos, estrangeiros (Souza, 1998).
Levando em consideração que o duplo nos confronta com a constante ambiguidade entre o dentro e o fora, o semelhante e o dessemelhante, o uno e o dividido, o branco e o preto, meu objetivo é pensar o racismo nesse contexto e com essa articulação.
Em Buenos Aires, fui assistir a uma obra de teatro intitulada Afroargentinas. Aqui, as protagonistas, duas mulheres negras de nacionalidade argentina, contam as suas histórias de vida e a relação com o país de nascimento. Estrangeiras no próprio país. De onde você é? É a pergunta que mais escutam, como se não pudesse existir sujeitos negros argentinos a não ser que sejam pessoas negras imigrantes, que não sejam da Argentina, mas de outra parte. A negritude na Argentina é esse lugar estranho que gera inquietações. Com isso, muitos brasileiros sentem-se interrogados. A pergunta sobre a nacionalidade abre para a possibilidade de estranhar-se, e aqueles que não pensavam na sua cor começam a olhar para isso. Neusa Santos Souza (1998) afirma que o efeito do trauma colonial na política do desejo é o repúdio à diferença existencial. Nesse sentido, ela faz uma defesa ao estrangeiro:
Pudesse o sujeito dizer sim ao estrangeiro, esse passageiro da diferença e o estranho haveria de se conjugar não com o desalento, mas aliar-se com a afirmação do múltiplo. Só assim o estranho viria se definir como afirmação alegre da diferença, verdadeiro antídoto contra toda forma de racismo. Contra o racismo o estrangeiro de toda parte, o estrangeiro do interior e do exterior de nós mesmos. (Souza, 1998, p. 163).
Referências
Fanon, F. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EdUfba, 2008.
Freud, S. O infamiliar [Das Unheimlich]: seguido de O Homem da areia de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. Publicado originalmente em 1919.
Nogueira, B. I. Cor e inconsciente. Kon, Noemi Moritz; Abud, Cristiane Curi; Silva, Maria Lucia da Silva. (Orgs.). O racismo e o negro no Brasil: questões para a psicanálise. 1 ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. p. 1-302.
Souza, N. S. O estrangeiro: nossa condição. Koltai, Caterina. (Org.). O estrangeiro. São Paulo: Escuta, 1998.
[1] O cartel I-migração: a clínica do estrangeiro e do exílio estava inscrito na seção de Minas Gerais e foi finalizado após completar dois anos. Participaram do cartel as cartelizantes: Ana Claudia Oliveira, Lucía López da Silva, Gicelma Barreto Nascimento, Iassana Scariot e Tainã Rocha e a mais-um Aline Guimarães Bemfica.