A discussão que apresentaremos foi disparada principalmente pelo texto “O ato analítico, ler e escrever”[2], de Mauricio Tarrab. Encontramos no livro, conferências e intervenções feitas pelo autor no período de 2019 a 2022. Ele está organizado em cinco temas diferentes, a saber: “política lacaniana”, “o impossível de dizer”, “fazer escutar o que está escrito”, “30 anos de TYA[3]” e “reflexões do cartel do passe”. Apesar de tratarmos aqui da articulação com um texto específico que tem como tema o dizer, recomendamos o livro a todos por conta de suas discussões atualizadas e bem conduzidas acerca de questões caras ao Campo Freudiano.
O texto original é curto, mas denso conceitualmente, e entendemos que ele orienta bastante quanto ao ato analítico, o ler e o escrever. Para tentar captar um pouco mais o que Mauricio Tarrab propõe em seu texto, trabalhamos em comissão da qual participaram Ondina Machado, Camila Drubscky e Aspázia Barcelos, a quem agradecemos. Buscamos uma costura do argumento com a clínica, a partir do relato de Susanne Hommel sobre sua análise com Lacan[4], para pensar como a leitura se dá e quem a faz.
A leitura do caso
Susanne[5] relata que, tendo nascido na Alemanha em 1938, sempre quis sair desse país por ter vivido os horrores e a angústia da guerra, além da fome e das mentiras do pós-guerra. Em sua primeira sessão com Lacan, ela questiona se poderia se curar de seu sofrimento, pois acreditava que, com a análise, poderia retirar de si sua dor. Mas ao se dirigir a Lacan com essa demanda, ante o olhar dele, ela compreendeu que isso não seria possível.
Após um tempo de análise, ela apresenta ao analista um sonho: acorda todas as manhãs às cinco horas e era às cinco horas que a Gestapo invadia as casas dos judeus. Susanne conta que Lacan, então, deu um pulo da poltrona e acariciou seu rosto com muita delicadeza. Em um primeiro momento ficou siderada, comovida com esse toque. Em um segundo tempo, ela decompôs a palavra Gestapo em geste–à-peau, que traduzimos livremente por “gesto para a pele” ou “gesto na pele”.
Anos depois, Susanne diz que pôde medir os efeitos que o ato de Lacan teve sobre ela, não de diminuir seu sofrimento, mas de modificá-lo.
A leitura no caso
Mauricio Tarrab situa que o ato analítico é um corte e se pergunta se ele também pode ser uma sutura. E propõe que o ato analítico é uma questão de ler e escrever. Propomos pensar o que foi lido no caso de Susanne, o que foi escrito e por quem.
Em seu desenvolvimento, Tarrab coloca que o real é um caroço em torno do qual se tecem histórias. Mas, ao mesmo tempo, seu estigma é ser um real que não se liga a nada, uma pedra que não responde, como o sofrimento com que Susanne chega à análise. Conforme Lacan no Seminário 24, há um limite de nossa operação, um real do sintoma que exclui toda forma de sentido e é exatamente o contrário de nossa prática, o que convoca um mais além da interpretação. O que exclui o sentido é o gozo e nosso trabalho, propõe Tarrab, é tornar o gozo parasitário um gozo possível, o gozo-sentido. Questionamos se essa passagem de um gozo parasitário ao gozo possível seria domesticar o sintoma, ao qual Lacan se refere em A terceira. Tarrab nos diz que o analista parece se enredar com o significante ao equivocá-lo, parece se enganar com seu sentido, o que faz emergir o significante sintomático e permite que o gozo circule em uma metonímia que dará a esse significante outra direção.
Há o que o paciente diz, no desejo em dizer. No desejo em dizer o inconsciente, ele diz “Gestapo”. Tarrab aborda a precisão de Lacan de que “o analisando diz mais do que quer dizer e o analista decide, ao ler, o que está aí no que o paciente quer dizer”. Lacan não disse “geste-à-peau” para Susanne, mas houve um ato que foi corte entre o que o analisando quer dizer e o que está aí, que não responde, é opaco, só pode se constatar, isolar, capturar: “[…] isso o analista corta, decide com seu saber ler, e isso é ao mesmo tempo que um corte, uma escrita”. O analista trabalha no impossível de dizer, tendo ao seu lado, do lado do ato analítico, o bem-dizer e o saber ler.
Primeiro se lê e depois se escreve? Tarrab lembra Lacan em Momento de concluir, “o analista, ele corta. O que ele diz é corte, ou seja, participa da escritura” e reitera: “no dizer do analista não há outra coisa que não escrita”. E indagamos se o gesto de Lacan equivaleu a um dizer, se um ato sem fala pode ser dizer.
No caso de Susanne houve um novo uso do significante “Gestapo” que martelava em seus ouvidos. Com a equivocação o gozo se tornou menos invasivo, permitiu que ela tirasse consequências da homofonia de geste-à-peau e Gestapo. Susanne[6] afirma que houve um gesto de tradução, em que a palavra alemã passou à língua francesa, língua da transferência, adoçando – como ela expressa – a sua relação com a língua alemã, que antes ela recusava, mas com a qual ela pôde, então, trabalhar em traduções.
A leitura no Colóquio
Em sua participação no Colóquio, Mauricio Tarrab lembra que Susanne esclarece ter saído perplexa daquela sessão, ligado para uma amiga e foi esta que a fez escutar “geste-à-peau”. Foi necessária a tradução de um terceiro para sair do estupor e permitir que o opaco que estava lá entrasse na linguagem. Assim se colocaram as duas dimensões da interpretação, o gesto e a tradução, fundamental para ela que estava entre duas línguas. Se o gesto foi de Lacan e o dito da amiga, o fato é que Susanne tomou para si essa interpretação. E, em sua contribuição ao Colóquio, Gabriela Grinbaum disse que as melhores interpretações vêm das amigas.
Outra colocação importante foi a de Maria Silvia Hanna ao apontar que esse momento da interpretação de Susanne é provavelmente o mais extraordinário dessa análise. Mas há em uma análise outras intervenções, não tão extraordinárias, que também vão movimentando esse real e não podemos idealizar que somente tais momentos são os que valem. A análise é muito maior do que uma interpretação que produz esse efeito e Mauricio Tarrab concordou evocando que não há tiquê sem autômaton.
Ainda, para nosso interlocutor, a posição do analista sempre está na corda bamba, sempre está no risco de cair de sua posição. Muitas vezes deixamos passar algo importante e não interpretamos ou também fazemos uma interpretação apressadamente.
[1] Texto apresentado no Colóquio e lançamentos de livros: Ler um Dizer, Atividade da Biblioteca da EBP – Seção Rio de Janeiro, realizada dia 23 de março de 2024.
[2] Tarrab, M. El acto analítico, leer y escribir. Tarrab, M. El decir y lo real. Olivos: Grama Ediciones, 2023. Versão em português no Boletim da X Jornadas da EBP-SP de 2023 – Psicanálise em ato.
[3] Red TYA (Toxicomanía y Alcoholismo).
[4] Hommel, S. Uma história de família no tempo do nazismo. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, abr. 2022.
[5] Vídeo Lacan: encontro com Susanne Hommel (1974). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fsE8UuTnNpw.
[6] Hommel, S. Uma história de família no tempo do nazismo. Correio: Revista da Escola Brasileira de Psicanálise, n. 87, abr. 2022.